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O anjo torto

Colaborador de Navegos escreve sobre um dos ícones da Contracultura no Brasil e do Movimento Tropicalista, o piauiense Torquato Neto, que se matou no dia 10 de novembro de 1972, um dia depois de ter completado 28 anos de idade, deixando mulher e filho e uma obra que seria postumamente publicada.

Bruno Cena Macedo

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Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina no dia 09 de novembro de 1944. Foi poeta, jornalista, letrista de música popular e experimentador ligado à contracultura. Filho único do defensor público aposentado Heli da Rocha Nunes (1918-2010) e da professora primária Maria Salomé da Cunha Araújo (1918-1993). Torquato partiu de Teresina para Salvador aos 16 anos para poder ingressar nos estudos secundários no Colégio Nossa Senhora da Vitória (Marista).

No início da década de 1960, Salvador estava ativamente imerso nas maiores transformações culturais daquela época, foi ali que o Anjo Torto se envolveu na cena soteropolitana, conhecendo Gilberto Gil, Caetano Veloso (que compôs a música Cajuína em sua homenagem) Gal Costa e Maria Bethânia.
Dois anos depois mudou-se para o Rio de Janeiro no intuito de estudar jornalismo, ingressa na universidade, porém não chegou a se formar. Isso não foi empecilho para atuar, trabalhou em diversos jornais da impressa carioca entre eles o Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora.

Árduo defensor de diversas manifestações artísticas e culturais de vanguarda, com ênfase na Tropicália, cinema marginal e a poesia concreta. Circulou muito ativamente na efervescência cultural da época estreitando laços de amizade com várias figuras como o poeta Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Ivan Cardoso, o artista plástico Hélio Oiticica e o músico, dramaturgo e escritor Chico Buarque.

Em 11 de janeiro de 1967 casou-se com a artista plástica baiana Ana Maria Silva de Araújo Duarte (1945-2016). No final da década de 1960, no ápice da ditadura militar no Brasil, após seus amigos Gil e Caetano terem sido exilados em decorrência do AI-5, viajou com a esposa pela Europa e Estados Unidos, morando em Londres por um breve período. No início dos anos 1970 retorna ao Brasil com Ana Maria, em 27 de março nasce Thiago Silva de Araújo Nunes, primeiro e único filho do poeta. Thiago ainda é vivo e é piloto de avião.

Após chegar ao Brasil começou e a se isolar, sentindo-se alienado pelo Regime Militar, rompeu várias amizades, passou por várias internações para tratar o alcoolismo.
Torquato Neto suicidou-se no dia 10 de novembro de 1972, um dia depois de ter completado 28 anos de idade, ao retornar de uma festa trancou-se no banheiro e abriu o gás, o que levou muitos a pensarem que havia sido morto a mando do Regime Militar, hipótese descartada depois. Seu filho tinha apenas dois anos de idade na época.
Em um bilhete o poeta piauiense transcreveu a seguinte nota de suicídio ainda hoje sem muitas explicações:

“FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”.

A produção musical de Torquato é imensa, com destaque para a canções A coisa mais linda que existe (em parceria com Gilberto Gil), Pra dizer adeus (com Edu Lobo), Mamãe coragem (com Caetano Veloso) e o poema musicalizado “Go Back” que em 1971 recebeu a primeira gravação musical do grupo Titãs em um disco gravado em Montreal na Suíça. Ao todo foram mais de 45 canções escritas, entre solos e em parceria com outros grandes nomes de seu tempo.

Sua discografia conta com quatro grandes produções, tendo destaque para Torquato Neto – Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia (1985) um projeto organizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro e o Governo do Estado do Piauí. Também participou como ator nos filmes Nosferatu, de Ivan Cardoso, em 1970, e Adão e Eva do Paraíso ao Consumo, de Edmar Oliveira e Carlos Galvão, em 1972, no mesmo ano dirigiu seu próprio filme Terror da Vermelha.

Durante sua curta vida Torquato Neto não publicou nenhum livro, mas seus poemas circularam por diversos jornais e revistas, sendo quase todos musicalizados. Após sua morte muitas biografias sobre ele e edições de suas obras reunidas foram organizadas e publicadas, com destaque para a biografia Torquato Neto e a carne seca é servida, por Kenard Kruel, pela editora Zodíaco em 2008, e Os últimos dias de paupéria (org. Ana Maria Silva Duarte e Waly Salomão) em 1984, no Rio de Janeiro pela Max Limonad)
O mais recente trabalho sobre Torquato é o documentário que foi ao ar em 2017 com o título Torquato Neto: todas as horas do fim, belíssimo projeto dos cineastas Eduardo Ades e Marcus Fernando.

Seu nome dá nome ao prédio central da Universidade Estadual do Piauí, ao teatro do Clube dos Diários, escola municipal e residencial em Teresina. Em fevereiro desse ano foi anunciado que uma escultura com três metros de altura em formato de anjo será instalada no espaço da alça direita da ponte estaiada. Após a instalação o local passará a se chamar Praça do Anjo, a inspiração veio do poema de Torquato Neto “Let’s Play That”, onde o poeta fala sobre um “anjo louco, torto” e com “asas de avião” que veio lhe visitar.

O Piauí deve sempre lutar para que seus escritores e poetas estejam sempre vivos na memória de seu povo, pois constitui parte de nossa história e identidade.