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O anjo, um conto de Luisa Mercedes Levinson

Vasculhando seus arquivos, o Fundador de Navegos descobriu uma velha tradução que fez de um conto dessa extraordinária escritora argentina Luisa Mercedes Levinson [Buenos Ayres, 1914-1986], que por muitos anos o honrou com a sua amizade e o distinguiu com farta correspondência e com autógrafos generosos. A pedido de Jorge Amado, alguns textos de seus seriam traduzidos pelo escritor potiguar e publicados na revista Exu, da Fundação Casa de Jorge Amado. Publica-se aqui, aqui, para que os leitores desta página, O anjo, para que nossos leitores se deliciem com a arte da palavra professada pela autora de El Abra:

*Franklin Jorge

Um escultor vivia sozinho em sua cabana, à entrada do bosque, meditando sobre a medida, o peso e a forma dos anjos do céu.

Certo dia, o pároco do povoado foi ao bosque assistir a um moribundo e, ao passar em frente da cabana do escultor, pediu-lhe que entalhasse um anjo de madeira para sua igreja.

O escultor saiu pelo bosque, cortou os galhos de uma árvore e começou a entalhar. Porém o seu ardor o sobrepujou e de suas mãos surgiu uma ninfa, depois uma dríade e, por último, quando já restava só um pouco de madeira, um geniozinho do bosque.

O escultor pensou que era necessário um sacrifício para puder criar um anjo, e abateu uma árvore com um ninho; sua faca talhou uma bela mulher com sete asas, que se parecia a Salomé. O escultor, contrito, mortificou suas mãos pecadoras com os espinhos mais afiados do bosque e pouco a pouco foi surgindo uma figura alongada, com duas asas rígidas. Porém o escultor não acreditava em anjos severos e continuou talhando, talhando até que a figura foi perdendo em majestade o que ganhava em doçura e assim foi se arredondando e sorrindo. Porém esse anjo, cheio de leite como um recém-nascido, tampouco era o anjo, e o escultor passou várias noites insone., estendido em seu banco de pedra, orando, para que um anjo verdadeiro descesse ates eu coração e suas mãos pudessem recriá-lo.

Já o caminho estava coberto de neve e de silêncio, quando o escultor encontrou no fundo do bosque uma árvore derrubada pela tormenta.

Com unção se pôs a talhar uma forma com algumas reminiscências barrocas, porém de imediato sua faca cortou com a memória e se submergiu nas zonas da simplicidade e da pureza. O escultor sentiu que suas mãos rezavam, à sua maneira, e a faca obedecia a uma lei. Surgiu uma asa trêmula de brisa, e a outra, leve e mais forte que o vento: era um anjo.

O senhor padre ao passar, aproximou-se e observou o anjo por um instante, depois voltou-se para o escultor:

– Pelo menos, antes, seus santos pareciam diabos, e sua Madona, uma robusta garota, porém este anjo não é nada; parece uma árvore, nada mais.

E se foi, de volta, pelo caminho, dialogando com as campinas distantes de sua igreja, cujos sinos anunciavam a Hora do Ângelus.

O escultor ficou quedou-se calado; uma alegria secreta transbordava de seu coração: ficara com o seu anjo.

-Meu anjo – dizia -, és um anjo. Um dia, voarás…

Estava à serviço do destino do anjo e o levou para fora da cabana; passou uma asa pela estreita porta, depois a outra. O anjo ficou em frente à janela.

O escultor passava os dias e as noites, recostado contra o vão, sem dormir nem comer, vigiando o seu anjo, à espera do milagre.

Uma manhã percebeu que o anjo respirava fundo, como se preparando para voar.

– Agora, agora – encorajava o escultor.

Porém o dia passou e o anjo continuava ali. Somente a noite, quando a ,lua surgiu, suas asas se agitaram, ensaiando o vôo.

De madrugada o escultor saiu de sua cabana. Duas lágrimas rolaram de seus olhos como haviam tremido as duas asas. O escultor ajoelhou-se diante do anjo:

– Há chegado o momento da despedida – disse. – Adeus, anjo. – Queria dizer mais coisas, porém não pode falar. Ergueu os olhos; temia começar a chorar.

Seu olhar se deteve no ângulo da asa esquerda, que desenhava o céu; algo terno e delicado ia crescendo, ali, algo que verdecia, como um broto.

O escultor, confuso, inclinou a cabeça. Sob o anjo, a terra branda se abria docemente para dar passagem a uma raiz

.Extraído do livro El sueño violado. Lilbonne, 27 de junho de 1959.