*Cleudo Freire Benarez
Quando você acorda e da sua janela olha para rua onde mora, você vê o seu pedacinho de cidade é isso o que você vê. Ele é o mesmo de ontem e anteontem e seguramente estão lá o mesmo poste, as mesmas casas vizinhas, quem sabe algum ponto comercial e praticamente todas as pessoas que por lá circulam rotineiramente. Seguramente sua vista não alcança a cidade inteira e ela se agiganta para longe da sua percepção cheia de outras realidades.
No seu pedacinho de realidade a vida corre como se pra você fosse tudo, apenas eventos esporádicos dão um pouco de movimento a paisagem tediosa, mas na verdade, tudo lhe é tão familiar. Em dado momento, surpreendentemente, alguma coisa muda esse cenário e por certo tempo, ele pode até lhe parecer irreconhecível, contudo, ainda é a sua rua e é da sua janela que você a vê.
Porém às vezes, fenômenos muito maiores e transformadores ocorrem e ameaçam qualquer previsibilidade e só então você é tomado por um grande estranhamento e vai sofrer até que possa acomodar tantas novidades aos seus esquemas, à sua estrutura de percepção da realidade. Felizmente, estes fenômenos acontecem, pois só assim é que você realiza a sua natureza e sai do encantamento da normalidade, essa condição tão artificial para o ser humano.
Sugiro um desafio: vá até a sua janela agora e olhe para sua rua, veja, sua feição está transformada, casas fechadas, pontos comerciais fechados, as pessoas não circulam como antes, rostos desconhecidos e mascarados não te darão bom dia e você, agora mais isolado do que nunca é levado a aprofundar sua experiência virtual, fazendo uma imersão num mundo paralelo ao qual tanto resistiu. As pessoas esvaziaram sua monótona paisagem, agora, elas trabalham em casa e chamam a isso de home office, oferecem cursos online, consultas online, negócios online e lives; restaurantes, lanchonetes, farmácias, lojas, supermercados tudo delivery e as grandes estruturas físicas de empresas sob ameaça. A tudo isso chamam de novo normal.
Novo normal ou seria novo-normal já que trata-se de um neologismo, não sei, mas o fato é que o termo me parece bastante apropriado para uma tentativa de confundir o inevitável processo de acomodação com o evitável comodismo, de fato, isso se faz com modismos.
Veja, o conceito de novo é inversamente proporcional ao conceito de normal, por tanto são termos que se contradizem, se é novo não é normal e se é normal não é novo, assim como não é novo naturalizar comportamentos.
A escrita deu o pontapé da história, mas não apagou o passado da humanidade; o livro deu um pontapé na tradição oral, mas não cerrou as cortinas do teatro; a ciência nocauteou o senso comum, mas não aposentou as parteiras; a revolução industrial destruiu a produção manufaturada, mas não deu fim ao artesanato.
Quantos “novos-normais” ao longo da nossa história ainda serão necessários para se saber que a nossa natureza é a mudança?
Por um motivo tão óbvio e oculto ao mesmo tempo, nós somos seres aprendentes, nós fazemos cultura, nós mudamos a realidade e é apenas por essa característica que a humanidade sobrevive na natureza. Não somos comodistas, nós aprendemos com as mudanças, nós provocamos mudanças para aprender mais e mais, acomodando novos conhecimentos à esquemas já estruturados.
O normal é um feitiço e o novo, seu antídoto.