*Alex Alves
No século XX essa ideia do artista proscrito e do valor da obra de arte na sociedade terá duas vertentes poderosas e contrárias, a do alemão Thomas Mann, que de certa forma continua o entendimento do artista maldito e incompatível, à la Baudelaire e a decadência simbolista, e por outro caminho temos Leon Tolstói, que ver o artista junto ao povo como uma espécie de proletariado da cultura.
Em textos como A Morte em Veneza ou Tonio Kröger, Mann trata da situação do esteta diante do mundo. O amor de Gustav von Aschenbach por Tadzio, em A Morte em Veneza, é também o conflito entre o artista e seus desejos que a sociedade não compreende e nem está preparada para sequer discuti-los. Mann é categórico quando fala, através de seu personagem central de A Morte em Veneza: “A educação do povo ou da juventude à base da arte é um empreendimento arriscado que mereceria ser proibido. Pois como pode ter aptidão para educador quem tiver por índole uma propensão natural, incorrigível, para o abismo?” É quase a mesma crítica de Platão aos artistas na República!
Tolstói parece-me um reacionário quando se trata de cultura. Ademais de seu conservadorismo, que o faz tecer amplos escárnios contra Baudelaire, Wagner ou van Gogh, por exemplo – ao ponto de afirmar que estes mestres não produziam arte, mas uma deturpação de arte, cada um em seu território, na literatura, na música e na pintura – Tolstói argumenta que o dever do artista é se fazer compreender pelo povo, de quem sempre será parte inseparável. Será assim que caminhará o realismo russo algumas décadas depois, pós-Revolução de 1917.
Tolstói também acredita em um sacerdócio da arte. Mas diferentemente do século XIX esse sacerdócio não visa criar uma nova religião para usurpar o lugar do cristianismo. Esse sacerdócio é uma continuação dos evangelhos, e os artistas seriam os novos evangelistas do povo, pregando a arte como forma de alcançar as virtudes do bem. O belo, enquanto finalidade estética, para Tolstói é uma corrupção do dever da arte, que deve, não a busca do belo, mas a representação de uma moralidade, de um bem coletivo.
Em Tonio Kröger, esse coletivismo é muitas vezes o oposto da criação estética! Kröger não se sente bem entre homens e entre mulheres, por vezes tenta, mas as pessoas lhe são apáticas, e por demais previsíveis. Por que perderia tempo com o povo, quando poderia estar criando, em sua solidão própria do grande artista?
É assim que Mann fala do artista e de seu meio, através de seu personagem na novela homônima, o poeta Tonio Kröger quando este dialoga com sua amiga Lisavieta Ivánovna: “Um artista, um verdadeiro artista, não um cuja profissão burguesa seja a arte, mas um predestinado e condenado a ela, você reconhece com um olhar pouco aguçado no meio da multidão. O sentimento de segregação e de exclusão, de ser reconhecido e observado, qualquer coisa de simultaneamente majestoso e desorientado em seu semblante. Nos traços de um príncipe que caminha à paisana no meio do povo podemos observar algo semelhante. Mas de nada adianta se vestir à paisana, Lisavieta! Disfarce-se, mascare-se, vista-se como um diplomata ou tenente da guarda de férias; basta abrir os olhos e dizer uma palavra para qualquer um saber que você não é um ser humano, e sim alguma coisa de estranho, inquietante, diferente…”
Este longo diálogo, praticamente todo o capítulo IV de Tonio Kröger, termina com uma impiedosa observação de Lisavieta, diante do drama de ser artista, que o alemão Kröger encara como uma maldição e um destino, mas que Ivánovna, que também é artista – pintora – simplesmente possui um olhar mais comedido e menos ideal. Diz ela para Kröger: “(…) quero lhe dar a resposta a tudo o que você disse esta tarde, e que é a solução do problema que tanto o inquietou. Pois bem! A solução é que você, aí sentado, é pura e simplesmente um burguês.”