*Luís da Câmara Cascudo
Em novembro de 1902, o Dr. Antônio Pereira Simões, engenheiro ilustríssimo, grande bibliófilo, entrava para o Instituto Histórico do Rio Grande do Norte. Como arras à sua recepção, doavam alguns livros que não tem preço. Entre eles o volume de Gaspar Van Baerle, publicado em latim, narrando á história dos oito anos de governo de Mauricio de Nassau no Nordeste do Brasil. O título é:- “Rerum per octennium in Brasilia et álibi nuper gestarum sub, praefectura illustrissimi Comitis I. Mavritii Nassoviae. Etc.” Tanto é grande o título como inigualável o trabalho.
Varnhagem, tão desdenhoso de comum, afirmava que a latiníssima História dos oito anos de governo de Nassau, por mais que corram os séculos, será sempre um livro importante e digno de consultar-se. É realmente trabalho sólido e claro, com minúcias curiosas de nossa vida, dos indígenas, dos episódios guerreiros e administrativos. De mais a mais, Franz Post ilustrou-o maravilhosamente, com grandes quadros representando paisagens, vistas das terras conquistadas, animais, árvores, figuras humanas. E quatro mapas dizem o limite do conhecimento geográfico holandês no século XVII.
Ficando no Rio Grande do Norte, basta dizer-se que está em Barlaeus o nosso primeiro mapa que elucidará muito mistério toponímico. Está a primeira representação da nossa Natal, com sua igreja. Está a fortaleza, imponente. E tudo feito por Franz Post, pintor famosíssimo.
Gaspar Van Baerle, em latim Barlaeus, nunca esteve no Brasil, mas leu documentação longa e rara. Foi um amigo pessoal de Nassau. Era médico, naturalista, poeta consagrado e um dos homens mais cultos da época. A obra foi impressa em Amsterdam, no ano de 1647. Em 1648 morria o autor. Mesmo em 1647 um incêndio devorou mais da metade da edição ainda na própria oficina do impressor, Joanes Blaev. O livro, antes de sair, ficou com o valor duplicado pela raridade. Há outra edição de 1660 e uma em alemão e outra recente, em holandês. A primeira edição, a princeps, como dizem os bibliófilos, é rara e cara. Os grandes livreiros de Londres, Maggs Brothers, pediam, há quinze anos, trinta e cinco libras esterlinas por um exemplar de 1647. Era esse, justamente dessa edição, que Pereira Simões oferecera ao nosso Instituto.
Em 1925 folheei o volume e tomei várias notas. Em 1932 procurei-o. Tinha desaparecido. Uma busca completa, feita por vários interessados, demonstrou que o Barlaeus não estava no Instituto. Soube que a última pessoa que o consultara fora o cônego Estevão Dantas. O cônego falecera, doando sua biblioteca ao Seminário. Mons. João da Mata, a meu pedido, rebuscou, livro a livro. A doação. O Barlaeus estava perdido. Fiquei obrigado a consulta-lo quando ia ao Rio de Janeiro, lamentando a perda irreparável para o Instituto. Na noite de 27 de fevereiro, destes 1940, andava, com o amigo Otacílio Cavalcanti, procurando os mapas que o Barão do Rio Branco reunira num álbum. Queria consultar Arrowsmith. Junto a um tomo das Ordenações do Reino estava um cartapácio sem capa, folhas revoltas, machucado. Maquinalmente. Com o livrão (43 por 29 cent.) debaixo do braço voei para casa. Por falta de todas as folhas do rosto não podia indicar a edição. As gravuras, mapas índices estavam completos. Sabia que a segunda edição, a de 1660, era de 664 páginas e a primeira, a preciosa, tinha apenas 340, por ser maior. Examinei o volume. Tem 340 páginas. É da edição “Princeps”, de 1647, que só possuem bibliotecas ricas, institutos sábios e bibliófilos com dinheiro farto. E, de vinte em vinte anos, é que aparece um Barlaeus para vender, pelo preço, quase de um automóvel.
Assim, o nosso Instituto voltou a possuir o Barlaeus que brincara de esconder tanto tempo. De minha parte, velho enamorado dos livros (Oliveira Lima como único epitáfio no seu túmulo tem essas palavras:- Aqui jaz um amigo dos livros.). Ainda estou com a incontida alegria do descobrimento. É uma alegria diferente das outras, não é verdade?
A República, Natal, 05 de março de 1940.
Fonte: Acervo LUDOVICUS – INSTITUTO CÂMARA CASCUDO