*Gerinaldo Moura
No Nordeste Brasileiro, existiram alguns estabelecimentos comerciais situados nas proximidades das usinas ou engenhos de açúcar, nos quais se abasteciam os trabalhadores da indústria açucareira. Raro era o trabalhador do eito que não ficava endividado no barracão da usina, cujas contas, ao que se dizia à boca pequena, jamais têm fim.
O trabalhador do eito, que é aquele mais ligado ao trabalho braçal, de limpar a terra com a enxada, plantar a cana e colher no período da safra, o qual também é chamado de cortador de cana não tem alternativa, senão aquela de adquirir mantimentos para a sua sobrevivência, no barracão.
Outros trabalhadores como os cambiteiros e fornalheiros por exemplo, são muito bem vistos pelos donos dos barracões, que para obrigá-los a tornarem-se seus fregueses, de certo modo, lhes facilitavam o crédito, vendendo fiado e tomando notas em folhas de papel de embrulho ou pequenas cadernetas.
Esse era o mecanismo de controle capitalista mais usado nas propriedades produtoras de açúcar, que transformava cada vez mais o simples trabalhador em escravo do estabelecimento.
Os barracões mais conhecidos da ribeira do velho Rio Ceará-Mirim, eram os que ficavam no Engenho Umburanas, no Engenho São Leopoldo e na Usina São Francisco, que chegavam a atender trabalhadores de propriedades circunvizinhas.
No Engenho Umburanas fundado pelo Padre Antunes, e que foi adquirido anos depois pelo senhor Paulo Varela, sócio e irmão do senador Dr. Luiz Lopes Varela, tinha como administrador era o senhor João Francisco de Azevedo, que recebeu a incumbência de gerenciar também o barracão. Aconteceu um fato bastante inusitado: uma mulher chegou a ficar responsável pelo barracão e seu nome era Maria Soledade de Azevedo Silva.
Dona Soledade, assim relata sua tarefa como responsável pelo barracão do Umburanas:
“…foi informada que o Dr. Paulo Varella tornara-se o novo proprietário do Engenho Umburanas, e sua família iria morar por lá, onde seu pai assumiria a administração da nova propriedade bem como iria tomar conta do “barracão”, vendendo os gêneros necessários às famílias dos trabalhadores e moradores do engenho, e que ela assumiria a tarefa de vender, anotar os “fiados”, fazer pagamento e comprar os produtos pra reabastecer o comércio, sendo esse foi o seu primeiro emprego…”
(Entrevista publicada na página Ceará-Mirim vale de cultura no dia 12 de setembro de 2020).
A proliferação dos barracões tornou-se uma constante não só nas paragens nordestinas e produtoras de açúcar, como também por fazendas de algodão e outras que produziam diversificados gêneros, como nos relata o poeta e cordelista Francisco Martins sobre a fazenda em que morou e observou a movimentação dos que por ali habitavam e trabalhavam:
“Eles chegavam aos poucos, sentavam-se nos bancos de madeira que existiam debaixo da tamarineira. Conversavam sobre os mais variados assuntos pertinentes aos ofícios, alguns aproveitavam e amolavam a faca peixeira, numa pedra. Havia aqueles que ostentavam os rádios AM, sempre ligados em algum programa de forró. Papai tinha um barracão. Vocês têm ideia do que seja isto? Tentarei descrever. Barracão neste caso não faz referência a um barraco grande, ele era um pequeno comércio, que funcionava dentro da nossa casa.
Havia duas portas abertas ao público, um balcão de madeira que ia de uma extremidade a outra da parede. Atrás deste ficavam as prateleiras, também de madeira rústica, pregadas na parede, onde eram expostas as mercadorias. Papai procurava vender o básico e indispensável à sua clientela; assim sendo, não faltava: rapadura, farinha, feijão, carne de charque, bacalhau, fumo em rolo e granulado em pequenos pacotes, para os tradicionais cigarros brejeiros. Tinha também sabão em pedra, papel para os cigarros, fósforo, sal, querosene da marca jacaré, que era vendido em litro, usado para abastecer as lamparinas…” (1)
No Engenho São Leopoldo, destacou-se dentre aqueles que tomavam conta do barracão, o senhor Arnaldo Moreira, que nos relata como foi sua trajetória no São Leopoldo:
“… passou a morar no Engenho São Leopoldo de propriedade do senhor Joaquim Câmara. Nesse período o funcionário que gerenciava a propriedade era Napoleão Moreira que o encaminhou para tomar conta do Barracão e vendia aos moradores e trabalhadores do engenho. Ali ele permaneceu por 04 (quatro) anos, saindo periodicamente do São Leopoldo até Ceará-Mirim, para comprar as mercadorias necessárias no armazém do senhor Manoel Luiz de Lima, na famosa Quadra do Mercado.
Para abastecer o barracão e vender aos trabalhadores que recebiam seus pagamentos em “vale” e compravam fiado durante a semana, seu Arnaldo Moreira tinha de tudo um pouco: carne seca, farinha, feijão, café em grão, utensílios domésticos, bolachas, brotes, soldas pretas e também a famosa cachacinha.
Havia um problema inerente ao funcionamento dos barracões: a questão da entressafra. Quando os engenhos paravam a moagem, os moradores continuavam a comprar no “fiado”, para pagar quando voltassem ao trabalho. Eram poucos aqueles que tinham outra renda, às vezes a venda de verduras, frutas, ou de alguma criação do quintal como galinhas e/ou porcos ou ainda, quando as mulheres que lavavam roupas, sempre iam pagando suas contas, ou abatendo um pouco até chegar a moagem…” (depoimento publicado na página Ceará-Mirim Vale de Cultura em 2020)
Dona Terezinha de Araújo Silva é conhecida no bairro onde mora, o Carrasco, como Terezinha do finado Lucas. Seu esposa foi um trabalhador da Usina São Francisco e que ajudava ao proprietário do Barracão, atendendo aos fregueses. Assim, ela nos informa como era o trabalho e cita o de um dos proprietários:
“…Nessa época, havia muitos engenhos de rapadura em pleno funcionamento, bem como as Usinas São Francisco de Luiz Lopes Varela, Santa Tereza de Ubaldo Bezerra de Melo e Ilha Bela dos Úrsulo.
A princípio, seu Lucas, como era bastante conhecido na cidade, trabalhava no Barracão da Usina São Francisco, como ajudante do senhor Isídio Félix da Silva, proprietário do Barracão. Além de atuar como despachante das mercadorias e de anotar na caderneta os “vales” que seriam descontados no dia do pagamento dos trabalhadores, ele também trabalhou como Apontador na Companhia Açucareira Vale do Ceará-Mirim…”. (Trecho da entrevista publicada na página Ceará-Mirim Vale de Cultura Face book em 21 de junho de 2021)
Dona Terezinha Araújo, ajudava nas despesas domésticas, fazendo bolos, que assava em um grande forno a lenha, construído no quintal de sua casa e que, após serem fatiados eram levados por seu Lucas, para o Barracão da Usina São Francisco onde eram comercializados, sendo um diferencial entre os produtos que nem sempre eram bons, mas que os trabalhadores eram obrigados a consumirem, por que recebiam o pagamento em vales que mal davam para pagar as compras do Barracão.
Segundo o senhor Antônio Galdino Pereira, ex morador da Usina São Francisco, tendo passado toda a sua infância, adolescência até a vida adulta brincando, correndo pelas terras e canaviais, tomando banho no “Rio da Draga”, conheceu muito bem o Barracão da Usina São Francisco, na época era proprietário o senhor Euzébio, sendo substituído pelo senhor Luís de França – conhecido pelo apelido de seu Loló.
Citonho (apelido de Antônio Galdino), é filho do senhor Miguel Vital Pereira, ex-funcionário da São Francisco, trabalhador da parte interna, na indústria, onde se destacava como Turbineiro. Ambos viram acontecer a junção de todas as usinas, engenhos e fazendas pertencentes à Usina, passando à nova nomenclatura chamando-se de Companhia Açucareira Vale do Ceará-Mirim, da qual ele foi funcionário.
Citonho relata que: “… a chegada do novo proprietário da Usina São Francisco, o Dr. Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo, coincidiu para o fim do Barracão. O usineiro reuniu os funcionários e disse que iria pagar todas as contas de quem tivesse vale do barracão e que o pagamento seria em dinheiro para que todos pudessem comprar no comercio em Ceará-Mirim ou qualquer local que escolhesse. Com isso, o barracão ficou sem fregueses e fechou suas portas…” (2).
Segundo Citonho, tendo suas portas cerradas, o prédio ficou desocupado e um grupo de desportistas da Usina São Francisco tentou conseguir o local para ser a sede própria do Botafogo, mas as tentativas esbarravam sempre em trâmites burocráticos e hoje, o prédio está à mercê dos vândalos, sendo mais um exemplo da arquitetura do século XX que está fadada ao desaparecimento iminente.
(1)- Francisco Martins Alves Neto (Mané Beradeiro) é Membro do Conselho Estadual de Cultura e da ACLA – Academia Ceará-Mirinense de Letras e Artes “Pedro Simões Neto”
(2)-Antônio Galdino Pereira (Citonho) – ex funcionário e morador da Usina São Francisco e membro da Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento.