*Franklin Jorge
Aos 93 anos, lúcida, ativa e sorridente, Dona Maria Etelvina é a rezadeira emérita do bairro Doze Anos, onde recebe os aflitos e desesperados em busca de cura para seus males do corpo e da alma. Viúva, teve dezoito filhos que lhe deram netos e bisnetos. Movida por uma fé cega, aceita a vida como uma dádiva de Deus e resume o segredo de sua felicidade com a interjeição “oh beleza!”, que pontua toda a sua conversa de mulher tímida e amante da leitura.
A rezadeira é uma velha branca, pequena e de feições agradáveis, apesar da pele encarquilhada e rugosa como casca de laranja-da-terra. Dotada de excelente visão, ao contrário dos filhos, enquanto conversamos ela não desgruda os olhos do programa de lançamento da festa comemorativa dos 80 anos da resistência do povo de Mossoró ao bando de Lampião, em 1927, um evento que está sendo patrocinado pela Prefeitura. Em voz alta, lê o que está escrito, separando as sílabas, “Oi-ten-ta a-nos de re-sis-tên-cia…” E, voltando-se para o neto, “Oh meu filho, você trouxe essa revista para mim? Oh beleza!…”
Pergunto-lhe se gosta de ler e ela responde entusiasmada: “Oh se gosto de ler!… E como gosto de ler, meu filho. Cultivo esse vício. É um prazer que moços e velhos podem cultivar sem se prejudicarem e sem prejudicar ninguém…” Pergunto-lhe se ela gostaria que eu lhe mandasse depois, por seu neto, alguns livros e revistas. “Oh beleza!”, exclama, agradecendo antecipadamente a oferta. “Pode mandar qualquer coisa que eu leio… Leio tudo que me cai na mão. Estou velha, mas tenho uma boa vista”, revela, satisfeita por mais essa graça concedida por Deus.
Nascida em Upanema em 1914, Maria Etelvina da Silva Costa declara-se uma mulher feliz, graças à sua fé e ao poder da oração. Rezadeira respeitada e querida por todos, vive na companhia dos filhos Raimundo e Bernadete, ambos cegos e dedicados aos seus cuidados. Moram os três sob o mesmo teto à Rua Gonzaga dos Santos 25, em Doze Anos. Legionária de Maria, congregação que propaga as virtudes de Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo, vive sabiamente o seu ocaso, resignada à pobreza e às circunstâncias, pois a seu ver quem sabe ser pobre sabe um dos maiores segredos da vida.
Dando-se com todo mundo, há anos é o consolo e o arrimo dos aflitos e desesperados que a procuram em sua casa modesta, escondida numa pequena rua antes integrada à Vila Socorro. Soube de sua existência por seu neto Rogenildo Silva, membro do Conselho Municipal de Cultura, que me acompanha nessa visita, na véspera da Sexta-feira da Paixão, uma data magna dos cristãos. Ele a beija ao chegar. No momento, me conta, está preparando um documentário sobre a avó, após ter tomado a iniciativa de gravar em 2001 um CD que preserva algumas de suas rezas, constituindo-se em uma preciosa fonte de pesquisa etnográfica. Quer preservar sua memória e ao mesmo tempo proporcionar subsídios para estudos sobre a religiosidade popular.
Sua chegada é bem aceita por todos nessa casa de porta e janela, sala comprida, de telha vã, dois quartos, cozinha, banheiro, quintal. Sua tia Bernadete, apesar de cega, cuida da mãe e mantém a casa limpa. A cegueira, nessa família, informa Rogenildo, é genética. Ele próprio sente a necessidade consultar um especialista. Embora moço, sua vista já começa a apresentar problemas.
Dona Maria Etelvina é a simpatia em pessoa. Sentada, perto da porta da rua, mostra-se alegre com a presença do neto, por quem diz ser louca. “Você veio, meu filho… Oh beleza!” Viúva de Antonio Félix – que ficou cego no fim da vida –, teve dezoito filhos, dos quais restam apenas dois. Ela parece ser daquelas pessoas que alcançam a longevidade ignorando a maldade humana. Por toda a vida tem se dedicado a cuidar da família, a rezar pela saúde dos outros e a fazer o bem. Durante todo o tempo de minha permanência em sua casa, ela não pára de receber visitas e oferendas trazidas por amigos e por todos aqueles que crêem dever-lhe a restituição da saúde ou algum conforto em momentos amargos da vida.
Bom dia, cumprimenta-nos um velho de óculos rayban e chapéu de palha, entrando de porta adentro, como alguém da casa. “Bom dia a todos” e, voltando-se para mim, “Como vai o senhor…? Como é mesmo a sua graça?” Respondo à sua curiosidade dizendo-lhe o meu nome, que ele, fazendo cara de quem não entendeu bem, simplifica com desenvoltura. “Ah, seu Antônio, como vai o senhor? Vejo que é novo por aqui…” Ele se apresenta como amigo da família e vizinho de muitos anos. “Minha graça, que recebi no batismo, é Luiz Gonzaga… Muito prazer, seu Antonio… Muito prazer… Essa velha é um patrimônio do bairro. Eu a visito, pelo menos, duas vezes ao dia… De manhã cedo, quando acordo, rezo por ela e por todos os que moram nesta rua… Ainda sentado na rede, rezo pensando nos moradores de cada uma dessas casas…Conheço todo mundo por aqui”.
Bernadete, conversando ao pé do ouvido do sobrinho, se diz desesperada por causa de uma desavença havida com um vizinho que a ameaçou até com a policia. “Não dormi nada a noite inteira, agoniada, a pressão lá nas alturas…”, reclama, tomando cuidado para não preocupar a velha mãe. “Isso é nervosismo”, resume Dona Maria Etelvina, de sua cadeira, sem avexar-se. Aos cochichos, Bernadete conta ao sobrinho que de madrugada a polícia rondou por aí, certamente atendendo ao chamado das pessoas que a ameaçaram prender, porque segundo os vizinhos ela estaria maltratando a própria mãe. Rogenildo explica-me, em voz baixa e em poucas palavras, que a avó, como a maioria dos idosos, é teimosa e só quer fazer o que lhe dá na veneta. Bernadete fica aflita, temendo que a mãe se esparrame pelo meio da casa e se machuque gravemente. Por isso, às vezes, precisa ser enérgica para evitar o pior.
Separada do marido e sem filhos, Bernadete conta que em meio à sua agonia teve que ir ao pronto-socorro e o médico de plantão lhe colocou um comprimido sob a língua, para aliviar-lhe a tensão. “Estou tão desassossegada, meu filho”, murmureja, indo e vindo pela casa, muito agitada. Rogenildo, muito prestativo e atencioso, vai buscar um copo d’água para a tia. “Beba, mulher, e se acalme”. “Que tem ela?”, quer saber a velha rezadeira, que não se desgruda do impresso que lê em voz baixa e às vezes soletrando sílaba por sílaba. “O jeito é levar vocês para a minha casa, na Ilha de Santa Luzia”, até as coisas ficarem mais calmas por aqui, propõe Rogenildo. A avó reage mansamente, numa voz branda, “Daqui eu não saio de jeito nenhum… Deixar minha casa… Era só o que faltava”. E, dirigindo-se a mim, resume o seu pensamento. “Não há nada pior que um mau vizinho, meu filho… Tudo isso são futricas de pessoas que se metem com a vida da gente para criar problemas…”
“Ah! os maus vizinhos… Não há coisa pior na vida de uma criatura”, reforça Luiz Gonzaga. “Ninguém escapa de seus maus bofes. É uma tristeza ainda ter gente que se ocupa da vida dos outros… Não bastasse as dificulidades dessa travessia que é a vida, ainda aparece quem queira botar pedras no caminho dos outros… Pra mim o mundo está perdido… Meu velho pai dizia que…”
Uma mulher desbotada, magra e alta, o cabelo branco ostentando nas pontas restos de tintura dourada, pede licença para entrar carregando uma sacola de compras. “Entre, minha filha, entre…”, convida. “Vim saber como a senhora está, Dona Maria Etelvina…e lhe trazer essas coisinhas”. “Oh beleza!… Sente, minha filha, sente por aí…” “Desculpe cortar a conversa de vocês… Como vai, Bernadete…? Não deixei de ouvir o que diziam… Realmente um mau vizinho estraga a vida de qualquer cristão…” O velho a interrompe sem qualquer cerimônia. “Meu velho pai dizia que…” E Dona Maria Etelvina, voltando-se em minha direção, “O senhor está fazendo o quê? Escrevendo…? Oh beleza! Graças a Deus, não tenho nada a declarar… A não ser que a nossa família é muito unida”. “Isso é tão raro hoje em dia”, diz a recém-chegada. “O que se vê, na verdade, é a desunião das famílias… O senhor não viu na televisão aquela reportagem do pai que se serviu das três filhas…? Chegou a engravidar uma de dez anos…” “Para mim, estamos vivendo os últimos tempos”, sentencia Luiz Gonzaga. “Meu pai, que Deus tenha em sua glória, dizia a nós que, no fim dos tempos, a gente haveria de ver coisa de estarrecer e cortar o coração, como pai matando filho, filho matando pai, irmão se servindo de irmãs e da mãe…”
Observo que o povo de Mossoró ainda preserva o antigo costume de “dar esmolas” na Semana Santa, uma tradição que está desaparecendo. Um menino vem entregar a Dona Maria Etelvina, uma sacola de supermercado apipada de coisas. “Foi mamãe quem mandou entregar essas coisas a senhora”… “Oh beleza, meu filho… Oh beleza! Diga à sua mãe que mais tem Deus para lhe dar…”. E, voltando-se para a filha cega, “Vá, Bernadete, vá guardar esse mantimento…Oh beleza, meu Deus!” Rogenildo explica que, como a avó não cobra por suas rezas, costuma receber esses presentes como agradecimento.
Nisso, uma mulher um pouco gasta pelo sofrimento, estaciona a moto na calçada em frente e entra na sala, dizendo que veio para ser rezada, pois está se sentindo muito mal. “Minha filha está sentindo o quê?”, pergunta Dona Maria Etelvina, desviando o olhar por um momento da página que lê. “Uma dor nas juntas, Dona Etelvina… Uma dor nas juntas… Todo o corpo me dói. Estou toda enjembrada… A senhora pode me rezar?”, indaga a paciente cheia de expectativa e esperança. “Rezo, minha filha, rezo… Fique sossegada. Abanque-se e fique à vontade…” A motoqueira senta-se ao seu lado.
A rezadeira pede que lhe tragam um raminho de alguma planta e o neto, prestamente, vai pegar no quintal um galho verde. “Senta, minha filha, senta aí… Abanque-se”. Ao receber o galho verde, pergunta-lhe o nome. “Marluce”, responde, timidamente, a paciente, abancando-se ao seu lado. E Dona Maria Etelvina, agitando o galho que me parece arrancado de um pé de espinafre, “Marluce, eu te curo de todas as suas doenças”, diz, puxando a reza numa voz enérgica e audível que me surpreende, pois difere do tom apagado que usara antes durante a nossa conversa. A impressão é que ganhou uma nova alma, mais jovem e vivaz.
Marluce eu te curo de todas as suas doenças, de
todas as inflamações, de todas as perturbações,
de todos os transtornos do corpo e da alma,
dos ossos, da carne, do sangue, eu te curo, Marluce,
em nome de Deus Pai, de Deus Filho, do Espírito
Santo, Virgem Maria, da Santíssima Trindade,
pois o sangue de Jesus tem poder. Marluce, eu
te curo do mal que a aflige, das mazelas que
você está sentindo na sua alma, no seu corpo,
no seu sangue, nos seus ossos, em nome de Deus Pai,
de Deus Filho, do Espírito Santo, da Virgem
Maria, da Santíssima Trindade vou jogar
todas as suas doenças e mazelas nas águas do mar
sagrado, em nome de Deus Pai, de Deus Filho, do
Espírito Santo, da Virgem Maria, da Santíssima
Trindade… Eu te curo, Marluce….
Dona Maria Etelvina reza rapidamente, agitando o galho verde, que, ao fim do oficio, murcha em suas mãos. Depois, despacha a paciente. “Vá em paz, minha filha. E, se precisar, volte…Você vai voltar à tarde?” A mulher sobressalta-se ao ouvir esta pergunta e quer saber se ainda precisa ser rezada para ficar boa. “Meu caso é grave, Dona Etelvina?” A velha a tranqüiliza. “Minha filha, reza nunca é demais”. A mulher, suspirando aliviada, agradece, respeitosamente e pega o capacete para ir embora. Antes, dirige-se a mim e declara, “Tenho tanta fé na reza dessa mulher!” Despede-se e arranca na moto de rua afora. “Veja, Bernadete”, exclama a rezadeira entre surpresa e encantada, ao perceber que eu não parara de escrever em meu bloco de notas. “Ele é canhoto, minha filha. E como escreve ligeiro… Oh beleza! Oh beleza! Como os canhotos são inteligentes. O senhor escreve o quê…?”
Raimundo, pai de Rogenildo, chega da rua sem dar pinta que é cego. Apesar de sua condição, anda sozinho por todo canto, pois conhece a casa e a cidade como a palma da mão. “Será que ele bebeu alguma coisa?”, quer saber a irmã, que se preocupa com o bem-estar de todos nessa casa. “O senhor bebeu?”, Rogenildo quer saber e o pai, prontamente, responde que “não”. “Eu estava dizendo a vovó que vou levá-los para a minha casa nova, na Ilha de Santa Luzia, por uns tempos, enquanto as coisas melhoram por aqui…” Raimundo concorda e acha a melhor solução para todos. “O vizinho dos fundos, dono daquele bar, está com picuinha com a sua tia… Acha que, por ela falar alto, está brigando com a sua avó…” A velha, porém, implica com a idéia de passar uns dias fora, pois não quer deixar a casa onde vive feliz com os seus. “Era só o que faltava, deixar esta casa, por causa dos outros…” “A casa nova tem de tudo, menos bujão de gás”, informa Rogenildo. Raimundo dá a solução. “Isso não é problema. A gente leva o daqui…”
FOTO ORIGINALMENTE PUBLICADA NA REVISTA CONTINENTE.