*Francisco Alexsandro Soares Alves
Quando Grant Morrison (1960) pousou suas asas sobre Gotham, sua primeira preocupação não foi o seu filho mais rico (ou mais heroico), foi uma instituição para lunáticos impiedosos sedentos de sangue. Historicamente o nome Arkham está ligado ao escritor H. P Lovecraft (1890-1937), cujos contos de terror e loucura são ambientados nessa cidade fictícia. Nos quadrinhos, a área geográfica passou de uma cidade para um asilo, mas preservou, além do nome em homenagem à criação lovecraftiana, a disposição de ser moradia de insanos e perturbados. Morrison, como habitualmente e habilmente faz, narra dois contos ao mesmo tempo. O primeiro, é sobre uma rebelião no Asilo. Os detentos fizeram vários reféns e exigem a presença de Batman. O outro, em flashbacks, é sobre Amadeus Arkham. Inaugurado por Amadeus Arkham, o sanatório logo ganhou fama de assombrado. Pessoas afirmavam que uma criatura assustadora caminhava pelos corredores, ao passo que a mãe de Amadeus assegurava que todas as noites um enorme morcego voava em seu quarto. A loucura logo tomou posse da família Arkham. Quando a história se inicia, lemos uma citação de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol (1832-1898).
ALICE: Mas eu não quero me encontrar com gente louca.
COELHO: Mas você não pode evitar isso. Todos somos loucos aqui… Eu sou louco… Você é louca…
ALICE: Como que sou louca?
COELHO: Deve ser. Ou não teria vindo aqui.
O destino começa a tecer suas teias. Ninguém vai a qualquer lugar que seja se não for por uma atração irresistível em si mesmo, uma identificação, com o ambiente. E a nossa vontade? Nosso livre-arbítrio? Morrison parece nos dizer que existem coisas que transcendem nossa vontade. No mais íntimo de nós, nossas escolhas já foram dadas, o tempo e as circunstâncias se encarregam de mostrá-las. Batman não vai ao sanatório por acaso ou por que os reféns assim serão soltos. Hoje ninguém duvida que o super-herói de Gotham sofra de problemas psicológicos graves. Quando Batman chega é saudado pelo Coringa. Percebe que o lugar está rodeado por sal. No espiritismo, esse elemento afasta entidades indesejáveis. Ele entra com tranquilidade. O sal também é usado pelo Coringa como motivos para provocações sobre a homossexualidade de Batman e Robin. O Coringa é um personagem que podemos categorizá-lo como um trickster. Ou seja, um malandro, um vagabundo, porém dotado de incrível sabedoria. Nas mitologias esse personagem aparece sob vários nomes: é Loki para os escandinavos, Mercúrio na mitologia romana, entre os Iorubás ele é Exu.
Morrison coloca no Coringa essa característica vivaz e chocantemente alegre que esses personagens possuem. Quase sempre em suas mitologias, são vistos como seres que merecem pouca confiança, pois são burlescos e mentirosos e gostam de brincar das maneiras mais inusitadas, de preferência falando com conteúdo fortemente sexual e fazendo gestos obscenos. Uma outra característica do trickster é que ele transita por diversas sexualidades e pode assumir várias formas e personalidades, uma hora está amigo ou outra hora é um feroz inimigo. Aqui, o Coringa também é o Coelho de Carrol.
Batman é Alice. Sua consciência do mundo em que se encontra é tão marcante quanto àquela da personagem de Carrol. Ele sabe que está em mundo de loucos, mas não pode escapar disso, pois a loucura é herança para algumas pessoas. Para Alice. Para Batman. A jornada pelo Asilo Arkham é feita em níveis assim como ocorre no livro de Carrol. Cada nível corresponde a uma espécie de “lugar” na mente de Alice/Batman. A imagem da cabeça é uma figura constante nessa história. “Parece que estamos dentro de uma cabeça que nos sonha”, diz o Chapeleiro Louco em certo momento. De baixo para cima, para a cabeça, para o cérebro que organizou tudo aquilo. A última parada de Batman é uma conversa com Cavendish, o diretor do sanatório. Inspirado pelos diários de Amadeus Arkham, Cavendish resolveu chamar o último habitante do Asilo, o Homem-Morcego. A essa altura Batman já está convencido que é louco e resolve colocar sua vida nas mãos de Duas-Caras. Se a moeda cair com a parte lisa para cima, ele sai; se cair com a parte riscada, ele fica. Pelo destino, Batman deve permanecer no Asilo. Mas Duas-Caras trapaceia e, não mostrado a moeda, afirma que Batman deve sair.
Outra imagem constante na obra é o do peixe. Podemos dizer sim que se trata do maior leitmotif dessa obra. Logo no inicio vemos a figura do signo de peixes, Pisces, dois peixes nadando em direções opostas. Esse símbolo significa reencarnação ou ressurreição para os cristãos, o próprio símbolo do cristianismo é um peixe, e nas religiões orientais, significa a compaixão exercida por Buda diante da vida. Quando o símbolo é quebrado, o resultado é a degradação do ser. A loucura. Porque Pisces também é o símbolo das coisas escorregadias, que não se controlam, que tentamos pegar com nossas mãos porém nos escapam. Nada no misticismo é gratuito. A força que une também é a força que desagrega. O Coringa enxerga o Arkham como um mundo. E novamente aqui temos Pisces, pois ele também é símbolo de multidões.
No fim percebemos que Amadeus Arkham é mais Batman do que o próprio Batman. Até certas situações são espelhadas. Por exemplo: há um momento em que Arkham fala: “Preocupados com meu estado de saúde, alguns amigos me levam à ópera. Parsifal, de Wagner. Eles não compreendem? Não veem que me despedaço em mil fragmentos?” Na ópera, Parsifal adentra na Torre Negra e encara um feiticeiro. Nos labirintos de loucura de Batman, este corre em direção ao Crocodilo, um vilão de aparência monstruosa. E Batman se pergunta ao encarar este dragão: “Devo entrar na Torre Negra, como Parsifal,e encarar o dragão que há lá dentro. Onde está meu Graal? Onde está meu tesouro?” Grant Morrison trabalha aqui de maneira a mais introspectiva possível. Não há muita violência externa, há uma violência e um horror psicológicos, e sobretudo, como de costume em Morrison, uma refinada melancolia com a vida.
