*Franklin Jorge
Quando o café chegou à Versailles e Madame de Sévigné, ao saborear a exótica bebida vaticinou-lhe um futuro incerto, não imaginava quantos escritores o apreciaria. Como Honoré de Balzac que consumia litros de café, enquanto trabalhava em sua Comédia Humana, sem saber se era dia ou noite, por até 48 horas seguidas, animado pela cafeína. Seja-nos suficiente o exemplo balzaquiano honrado por Baudelaire.
O café, como o fumo, são prazeres intelectuais. Com o seu aroma embriagante que se propaga em ondas suaves e formas evanescentes que nos sugere a existência de mundos paralelos que nos despertam devaneios e a imaginação que se amplia em círculos crescentes até a mais completa diluição de seus sucessivos contornos.
Sempre apreciei o café e o tomava todas as manhãs, quando menino, diluído em leite colhido no curral, ao lado. Minha avó, que só tomava diariamente dois cafés, contava-me como um pastor árabe percebera que as suas cabras se excitavam ao comer os frutos do cafeeiro, deu o primeiro passo para a descoberta e a criação do estimulante mais popular no mundo. O consumo do café é universal. Por isso estranhei, quando menino, ao passar umas férias com a minha tia Momó, em Lages, ela completou nossas xícaras com água quente. Contudo, seguindo o costume de meus primos, o bebi assim no café da manhã, enquanto estive lá. Sentindo-me em Roma como os romanos.
Geralmente o sertanejo não bebe café à noite para não perder uma boa noite de sono. exceto nas Cantorias e debulhas de milho e feijão, nos alpendres, à luz de lamparinas e fogueiras, quando os vi em mutirão de vizinhos e amigos dos anfitriões que os recebia com café, batata e milho assados, em intervalos desse adjutório que mantinha a comunidade ativa e solidária. Um costume que criava laços e disseminava a convivência. Muitos namoros, noivados e casamentos começaram nessas noitadas de debulhas e congraçamento social. O cafezinho, além de um hábito do sertanejo, é sempre sinal de acolhimento e recepção calorosa. Bem-vinda. Desejada. Sempre se faz uma pausa para um café.
Ibsen passou quarenta anos sentado em um café, em Paris, lendo jornais da Noruega. Sem um caderno, sem um lápis que alguém tenha visto alguma vez, quando e como escreveu suas peças revolucionárias que deram o que falar no mundo. O café aglutina e inspira. É, por excelência, um posto de observação privilegiado.
Às vezes esconde dramas inauditos. Basta observar e voltar a observar atentamente, de novo. No Café Angrense, na esquina das ruas Do Passeio e Dr. Rodolfo Dantas, toda vez que ali parava para saborear um cafezinho, deparava-me, com um homem tímido, sempre de terno escuro, escritor muito festejado em Mossoró. Dia e noite, da abertura ao fechamento da famosa cafeteria, que reunia remanescentes de um Rio que passara em suas vidas e, como sobreviventes, aportavam naquele lugar perfumado e frequentado por habitués e transeuntes apressados. Sim, vi-o uma centena de vezes na calçada e no balcão do Café Angrense.
Voltando ao Rio, anos depois, ao passar pelo Café Angrense, lembrei-me do velho escritor solitário. Não estava mais lá; desaparecera. Sondando discretamente os frequentadores mais antigos e, por uma garçonete de outros tempos, soube que havia muito morrera. E, aos poucos, sua espantosa história de vida ganhou forma e relevo apavorante. A mulher com quem se casara, ainda jovem, enfarou-se dele e não suportava mais ver a sua carantonha sombria e muda. Tomou-se essa ojeriza uma repulsa crescente, avassaladora, sem remissão, por quase cinquenta anos de vida compartilhada em um pequeno e modesto apartamento no Centro do Rio. Até que um dia foi sentenciado sumariamente a, dali pra frente, todos os dias, ele devia sair de casa antes que ela acordasse; e só podia voltar, tarde da noite, depois que ela dormisse. E como brinde a megera rasgou todos os seus livros e papéis. Sem dúvida, será seu único ato em favor da literatura…
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