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Fundador de Navegos transcreve fragmento de livro inédito sobre um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, nascido em Goianinha em 1888 e falecido no Assu em 1967.

*Franklin Jorge

O poeta João Lins Caldas já era uma lenda viva no Assu quando, menino, o conheci. Magro, fisicamente parecido com Ezra Pound, seu nome corria de boca em boca, sempre de uma maneira fantasiosa ou equivocada. Ao referir-se a si mesmo, chamava-se “o Capitão Caldas”. tinha a fama de intrigar-se com qualquer um por  “me dê cá aquela palha”, como se dizia então das pessoas facilmente irritáveis.

Dizia-se que matara um homem no Rio de Janeiro ou em São Paulo e que o escritor José Geraldo Vieira se inspirara nele para criar o personagem Cássio Murtinho do romance à clef “Território Humano”, uma obra basilar da moderna prosa brasileira.

Amigo de Padrinho, algumas vezes seu Caldas parava na nossa casa, no número 89 da rua Moisés Soares, quando se demorava em animadas conversas sobre Trotski, Getúlio Vargas e Nietzsche. Quase somente ossos e rugas, vestia sempre o mesmo terno desbotado, entre azul e cinza. Não dispensava a gravata escura mal atada em torno do pescoço cheio de dobras. Ocasionalmente trazia um embornal encardido e a espingarda à tiracolo, que depositava no chão, atrás da porta. Apesar da fragilidade física, deixava transparecer uma certa paixão juvenil que desautorizava os sinais da velhice.

Certamente Padrinho simpatizava com as ideias do poeta. É possível que lhe dedicasse até algum afeto, pois na intimidade da família exaltava os seus dons, louvando-lhe a inteligência visionária e a lucidez dos seus sonhos ecológicos numa época em que esta palavra ainda não fazia parte do vocabulário da mídia.

Dudé, moça que ajudava nos trabalhos domésticos da casa, nossa querida companheira de brinquedos e arteirices, costumava invocar o nome do poeta quando desejava chantagear a mim ou a minha irmã. Assustados, muitas vezes subíamos na meia parede da sala e daquelas alturas examinávamos, cheios de curiosidade, o velho Caldas, muito cortês e atencioso para com todos nós.

Somente muitos anos depois eu saberia que a mãe do poeta morara naquela mesma rua e talvez morrera num daqueles velhos casarões construídos num tempo em que a rua ainda era a rua das Hortas, historicamente a mais antiga da cidade. Dona Fefa, a mãe do poeta, era homeopata e dava seus remédios à população. Talvez seu Caldas a evocasse nesse trânsito vespertino, porém não creio que o fizesse, dada a sua extrema discrição no que se referia aos assuntos de família.

O momento político o interessava muitíssimo, juntamente com os assuntos agrícolas. Como Padrinho, que introduziu a irrigação no Vale do Açu, seu Caldas embriagava-se com o áspero e delicioso sabor da terra. Possuía um sítio chamado “Frutilândia”, nas cercanias da cidade onde costumava passar o dia, absorto na leitura da natureza sobrenatural. Amando seminalmente a terra, o velho poeta espremia o caju sobre a comida com as mesmas mãos angulosas com que acariciava as árvores, os bichos e as palavras.

A escritora Maria Eugênia Maceira Montenegro, amiga e confidente do poeta João Lins Caldas e FJ