*José Vieira Fazenda – Escritor e médico, autor de Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro.
Sempre respeitadas e dignas da consideração do nosso povo foram e são, sem engrossamento, atualmente as religiosas da Ajuda. Os poetas e poetastros de outrora as estimavam pela maneira porque eram tratados por ocasião das festas do Natal, quando elas, por entre as grades do convento, lhes atiravam motes, os quais, com prontidão rimados, eram seguidos de doces e guloseimas.
Nisso eram elas insignes. Quem não conhece os clássicos bolos da mãe Benta, os pastéis de Santa Clara e os brancos suspiros que ainda hoje fazem vir água à boca de muita gente!
Não venho tratar da história da fundação desse convento, no tempo do bispo D. João da Cruz, e inaugurado pelo bispo D. frei Antônio do Desterro, o qual foi muito auxiliado pelo depois célebre brigadeiro Alpoim, porque só a descrição das festas celebradas encheria toda a folha.
Hoje é de louvar-se o zelo, com que as freiras da Ajuda vão aumentando o convento e restaurando a igreja da padroeira, muito danificada por ocasião da revolta, e onde se encontra a mais bela e artística imagem da Senhora da Piedade desta cidade, cópia de outra muito célebre na Europa e que figurou na exposição de Munique, obra do famoso artista Sylvius Eberle.
Dando de mão ao muito que poderia dizer sobre esse mosteiro, vou tratar de um assunto do qual nunca historiador ou cronista algum se ocupou, incluindo o Sr. Moreira de Azevedo, que, aliás, minuciosamente descreveu o interior do convento: trata-se, nada menos, de um artístico e monumental chafariz, que eu chamarei das Saracuras, o qual está erguido no pátio central.
Construído de pedra do país, é um objeto de arte digno de ver-se, pois, mostrando o gosto da época, assinala a perícia dos nossos antigos canteiros, e tem bonitos ornatos, fundidos em bronze (na Casa do Trem [1]), e um belo brasão trabalhado em mármore.
Esse chafariz simboliza a gratidão das freiras para com o vice-rei, conde de Resende, que em 1799 concedeu mais um anel d’água, para uso do convento; tais pelo menos são os dizeres do brasão acima referido, onde se acha a inscrição comemorativa desse fato, encimada pelas armas daquele vice-rei.
Por quatro escadas de cinco degraus sobe-se para o embasamento, que é largo, e sobre o qual se apoia uma grande bacia circular, de cujo centro levantam-se quatro pedestais onde pousam outras tantas saracuras de bronze, as quais lançam pelos bicos na bacia límpida água, que desaparece para ser lançada de novo pela boca de quatro cágados que a despejam em quatro tanques colocados nos espaços entre as escadas.
Tudo isso é coroado por uma pirâmide de três metros, em cujo ápice se vê uma cruz de ferro.
Pena é que tal monumento não possa ser apreciado, graças aos rigores da clausura.
Aí fica porém a descrição, cabendo-me a glória de ter sido o primeiro a falar dessa obra d’arte oculta aos olhos dos profanos, a qual leva sem dúvida vantagem às pesadas e enferrujadas fontes públicas, inauguradas, há poucos anos, em nossas praças, – fontes que primam pela ausência do precioso líquido tão decantado pelo poeta Silva Alvarenga nos versos dedicados a Luiz de Vasconcellos!
Jaz por terra o célebre chafariz das Marrecas, transformado em portão do quartel da brigada policial.
Já não se fala na fonte das boiotas, nem nas águas férreas de Matacavallos, da antiga chácara da Bica.
A Carioca tristonha pode dizer eu era assim (quando de suas 36 torneiras jorrava a água em profusão) e estou ficando assim (servindo de pouso a vagabundos). Que pelo menos fique perpetuamente guardada pelo cuidado das religiosas da Ajuda a fonte das Saracuras, salvo se alguma desapropriação por utilidade pública não vier arrancar o brasão do conde de Resende, que parece não ter sido tão casmurro, nem tão mau administrador como se pretendeu.
Essa é a opinião do paciente investigador dos arquivos da Santa Casa de Misericórdia, onde se encontram provas do zelo, inteligência e perspicácia daquele vice-rei, que foi um dos melhores provedores da Misericórdia.
Por hoje – disse.
[25 de Outubro de 1896.]