*Frederico Toscano
O papel inovador de Giovacchino Antonio Rossini (1792-1868) na história da ópera passa necessariamente pelo emprego dos recursos convencionais de composição que ele compartilhou com seus contemporâneos e deixou como legado a seus seguidores.
Na obra A History of Opera: The Last Four Hundred Years (Penguin, 2015), os pesquisadores Carolyn Abbate e Roger Parker afirmam que a história da ópera tem sido geralmente escrita como um progressivo processo de mutação de formas musicais, observando-se, porém, frequentes resgates e regressão a estilos e recursos antigos. A alternância padronizada entre recitativo (com diálogo e ação cênica) e uma ária de um só movimento (com monólogo e reflexão) no início do século XVIII, já enfrentava resistência nas últimas décadas do mesmo século.
Na época de Rossini, nasceu o chamado “movimento múltiplo” como unidade formal da ópera. Essa unidade era mais previsível nas óperas italianas, mas também passou a representar a espinha dorsal de obras em francês. Tratava-se de um número contendo momentos estáticos e movimentados. Nas primeiras décadas do século XIX, com mais ênfase na ópera-cômica, o recitativo ou diálogo falado com acompanhamento contínuo alternava com esses números; mas o recitativo foi ganhando, pouco a pouco, um acompanhamento orquestral, e assim foi estilisticamente absorvido nas seções movimentadas dos números operísticos. Jean e Brigitte Massin (Histoire de la Musique Occidentale, 1983) chegam a considerar que, em certos domínios, Rossini foi mais longe do que Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), morto alguns anos antes que ele nascesse: em Elisabetta, regina d’Inghilterra, foi o primeiro a renunciar totalmente ao recitativo secco, sem por isso valer-se do recurso ao estilo francês ou alemão, ao diálogo falado.
O sucesso de Rossini no domínio do emergente repertório da década de 1820 tem a ver com uma matriz de padrões formais recorrentes de composição que nasceu em suas mãos, que iria influenciar as várias décadas seguintes na Itália. Era o que Abbate e Parker chamam de código rossiniano. Tal código evitava aventuras frustrantes e agradava bastante às plateias. A ária solista, principal elemento, era composta tipicamente por um recitativo introdutório seguido por três movimentos exemplificados no vídeo abaixo da ária “Quant’è grato all’alma mia” de Elisabetta, regina d’Inghilterra, de Rossini: (a) um movimento lírico, em geral de andamento lento e com frequência chamado de cantabile; (b) uma passagem movimentada de ligação, estimulada por algum acontecimento em cena e chamada de tempo di mezzo; e (c) uma cabaletta de conclusão, geralmente mais rápida do que o primeiro movimento e exigindo agilidade por parte do cantor.
Os grandes duetos e os longos números executados por conjuntos tinham o mesmo formato, mas com um movimento de abertura antes do cantabile, quase sempre com diálogos entre seus personagens. Esse esquema, porém, não era seguido de forma rígida. As soluções operísticas de Rossini muitas vezes eram diferentes desse modelo, em especial nos conjuntos de suas óperas italianas mais tardias. Às vezes, como no segundo ato de Semiramide, ele utilizava uma técnica que adicionava uma sequência de movimentos num só número, respondendo melhor às peculiaridades da situação dramática.
Mais radical ainda, segundo Abbate e Parker, é o ato final de Otello (1816), que pode ser ouvido no áudio a seguir, uma audaciosa tentativa de Rossini em transpor Shakespeare para os termos da ópera italiana. Formatos fixos quase desapareceram em favor de números breves e tocantes, repentinos contrastes e injeções de colorido local. Mas Otello foi um caso extremo: com mais frequência, Rossini manteria os números de múltiplos movimentos, mas os expandindo e modulando. Jean e Brigitte Massin entendem que, num contexto em que o teatro cantado aproximava-se do teatro propriamente dito a partir de Elisabetta, Otello contribuiu para familiarizar a Itália com um universo romântico ao qual ela haveria sempre de sentir-se um pouco estranha.
Um caso clássico de movimento múltiplo é o chamado terzettone (termo inventado pelo próprio Rossini, significando um enorme terzetto, ou trio) que ocupa a metade do primeiro ato de Maometto II (1820), numa elaborada ação cênica: são reunidos num único bloco musical um recitativo acompanhado (cerca de quatro minutos de música), um trio (sete minutos), sem conclusão musical, apontando para mudança de cena (dos aposentos de Anna para a Piazza di Negroponte), um coro feminino (dois minutos), a oração comovente de Anna (outros três minutos), um novo recitativo e o retorno do trio interrompido (mais 14 minutos). Um total de meia hora de música. Há quem atribua o insucesso da estreia da ópera em Nápoles às suas estruturas musicais atípicas e pesadas para o público, como se observa neste número.
Apesar das naturais manipulações, essas formas fixas de composição de óperas ajudaram a comunicação teatral de duas importantes maneiras: primeiro, deram aos cantores principais um variado leque de possibilidades para exibir sua arte, e com isso reivindicar a identificação do público; segundo, isso assegurava certo nível de expectativa do público, que podia ser aproveitada para efeito dramático. O mesmo pode-se dizer de alguns recursos de Rossini que tornavam a sua música instantaneamente reconhecível: os ritmos enérgicos de seus temas orquestrais, com suas típicas marcações e acentos inesperados, bem como suas melodias líricas delicadamente sentimentais e finamente equilibradas.
Donald Grout e Claude Palisca ressaltam em A History of Western Music (Norton, 1988) o dom invulgar de Rossini para a melodia e seu faro especial para os efeitos cênicos, que lhe proporcionaram o sucesso precoce. O estilo rossiniano combina um fluxo melódico inesgotável com a vivacidade dos ritmos, a clareza do fraseado, a estrutura equilibrada e por vezes muito pouco convencional do período musical, uma textura leve, uma orquestração fluida que respeita a individualidade de cada instrumento e uma estrutura harmônica que, embora não sendo complexa, é muitas vezes original, afirmam tais autores. Um bom exemplo dessas características está na cabaletta para tenor “Se a’ miei voti Amor sorride” no primeiro ato de La donna del lago.
Tudo isso aparece também nas aberturas rossinianas, com uma melodia sentimental na lenta introdução e uma ideia ritmicamente marcante como primeira melodia principal. A abertura é o lugar principal do mais famoso de todos os truques rossinianos, o célebre crescendo de Rossini, tipo de ostinato, bem audível no final da sinfonia inicial de La gazza ladra, no qual uma sequência de oito ou dezesseis compassos será seguidamente repetida, a cada vez com uma orquestração e um nível dinâmico mais intenso
O crescendo é um processo simples e eficaz que Rossini utiliza também nos seus conjuntos e árias: a animação crescente é obtida através das muitas repetições de uma frase, cada vez mais forte e mais aguda, como acontece em “La calunnia è un venticello” de Il Barbiere di Siviglia, um dos seus momentos mais inspirados e criativos. Nesses crescendos, a repetição era, claramente, um momento de prazer para o público: o fato de todos saberem, desde o início, como o crescendo ia se desenvolver estimulava a antecipação de seu clímax, em vez de amortecê-lo.
Outra prática operística de Rossini cabe ser aqui destacada como algo bem característico de suas óperas: os ornamentos. Estes eram anotados rigidamente por ele não apenas como desejo de controlar os artistas numa atividade muito apreciada. Por trás de todo o magnífico fluir de um som vocal há uma espécie de estética constante, que é o fato de que Rossini continuou a acreditar teimosamente na voz que canta como o meio pelo qual a beleza e a expressividade enfim se unem. O fato de que tantas de suas melodias sejam adornadas com muitas notas é um traço que pode parecer algo mecânico, ou até mesmo superficial. Mas para Rossini e o público que adora essa escrita florida, lembram Abbate e Parker, os infindáveis grupetos, trinados e volatas, não eram ornamentos no sentido moderno, nem decorações de uma melodia básica. Eram, sim, os próprios meios pelos quais uma bela melodia podia comunicar sua mensagem especial.