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O criador enquanto crítico

Quando as funções da crítica e de criador se misturam, o resultado, segundo o escritor Ricardo Piglia, é o que de melhor foi criado no século XX.

*Ricardo Piglia

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Baudelaire foi o primeiro a dizer que é cada vez mais difícil ser artista sem ser crítico. Alguns dos melhores críticos são aqueles que são tradicionalmente chamados de artistas: Ezra Pound, Bertolt Brecht, Paul Valéry. O próprio Baudelaire, é claro, foi um crítico excepcional. Que uso da crítica um escritor faz? Essa é uma pergunta interessante. Na verdade, escritor é alguém que trai o que lê, que se desvia e ficcionaliza: há um excesso na leitura que Borges faz de Hernández ou na leitura que Olson faz de Melville ou Gombrowicz de Dante, há um certo desvio essas leituras, um uso inesperado do outro texto. A discussão sobre Shakespeare no capítulo da biblioteca de Ulisses, e esse capítulo é para mim o melhor do livro, é um bom exemplo dessa leitura um tanto excêntrica e sempre revigorante.

A ensaísta italiana Maria Corti disse numa conferência que o escritor que escreve crítica tem uma competência acima do crítico que apenas critica. É produtor de textos e isso lhe confere um conhecimento profundo das obras literárias. Está de acordo?

Em termos gerais, claro, concordo. Admiro muito os ensaios de Auden, de Gottfried Benn, de Butor, a lista poderia continuar; As notas de Mastronardi, por exemplo, são muito boas. E o que eles terão em comum? Por um lado, uma grande precisão técnica e por outro uma estratégia provocativa. Em geral, a crítica que os escritores escrevem sempre levanta diretamente o problema do valor. Julgamento de valor e análise técnica, eu diria, mais do que interpretação. Os escritores intervêm abertamente na luta pela renovação dos clássicos, pela releitura de obras esquecidas, pelo questionamento das hierarquias literárias. Os exemplos são muitos. O panfleto contra a poesia de Gombrowicz, o resgate de Bouvard e Pécuchet por Pound, a forma como Borges lê os “precursores” de Kafka, a revalorização da ficção científica por Butor, os ataques de Nabokov a Faulkner: tentam sempre tentar um desvio, resgatar o que está esquecido, enfrentar a convenção. Os escritores são os estrategistas na luta pela renovação literária.

 

Ricardo Piglia, entrevistado por Mónica López Ocón.