*Franklin Jorge
Ainda quando não sabia ler nem escrever, minha Avó materna ao escrever para a única filha, colocava-me de pe sobre uma cadeira à cabeceira comprida mesa de cedro, coloca a caneta Parker 51 entre os meus dedos e, fechando minha pequena mão entre a sua, fazia-me escrever para a minha mãe, a ‘’Mamãe de Lajes” que morava naquele município a caminho de Natal, onde ‘’nunca chovia’’, ditando em voz alta as notícias da família que vivia retirada no Estevão, entre os rios Panom, que só corria nas grandes invernadas, e o do Assu, que em tempos mitológicos teria sido percorrido por navios fenícios, segundo informava, orgulhosa de habitar os uma terra muito antiga e rica de história.
Educadora vocacionada, instruída e dotada de notável cultura humanística, de que em sua inata modéstia não fazia alardes, prodigava-me precocemente lições hauridas de seus queridos autores, em especial dos Greco-latinos que lera em sua mocidade no idioma de Virgílio. Nessas caminhadas, da nossa casa ao sitio de bananeiras verdolengas, frescas e sombrias, plantadas numa grande extensão de terra irrigada, entre o córrego e a ribeira do Assu, evocava suas leituras em prosa e verso, de autores clássicos e modernos. Do outro lado do rio, além das águas correntes, Ipanguaçu, que os habitantes mais antigos do lugar ainda chamavam pela antiga denominação de Sacramento.
Todos os dias, mal raiava a manhã que se ia iluminando à medida que avançávamos entre as ervas orvalhadas pelo sereno da noite, em busca daquele pequeno Éden, para colhermos verduras e legumes da horta que com a ajuda de Antônio Conceição, descendente de escravos, disposto e espirituoso, que costumava passar-se, em seus passeios por Macau, Pendências e Areia Branca, como ‘’filho de Seu Fonseca’’, expediente que não agradava à minha avó, mas lhe provocava o riso, ao pensar quanto ele podia ser esperto e capaz de safar-se de obstáculos e dificuldades. Consta que certa vez viveu de tripa forra como hospede do Prefeito de Macau, ao apresentar-se em sua casa como enteado de minha avó.
Nesse trajeto que sempre me parecia curto demais, tamanho o meu desejo de prolongar infinitamente os relatos de minha avó, recuperados de suas múltiplas leituras, que incluía Shakespeare, sobretudo suas comedias e dramas históricos que recriavam a crônica dos reis ingleses. Sabia muitas páginas de cor de quantas ele escrevera. De Henrique V, lembrava-se especialmente de seu discurso que na edição da Editora Melhoramento, São Paulo, 1952, corresponde à Cena III do IV Ato, no acampamento inglês, na iminência de uma grande batalha contra os franceses, em Azincourt, cujas peculiaridades geográficas não lhe eram desconhecidas. O discurso do rei, considerado uma das mais belas criações do ”Bardo Inglês”, como gostava ela de se referir ao autor de Macbeth, é precedido por uma conversa entre os Duques de Gloster, Bedford e Exeter, irmãos e tio do Rei, e os Condes de Salisbury e Westmoreland.
Vale a pena transcrever para contextualizar o discurso do rei que a minha avó sabia de memoria e gostava de repetir-me:
Gloster – Onde está o rei?
Bedford – A cavalo saiu para revista passar nas tropas.
Westmoreland (Referindo-se aos franceses) – Eles têm sessenta mil homens de combate.
Exeter – A proporção é de cinco para um, sendo, além disso, tropas frescas e descansadas, somente.
Salisbury – Que combata do nosso lado o braço de Deus grande. Terrível desvantagem! Deus esteja com todos vós; vou assumir meu posto. Se por acaso só nos encontrarmos novamente no céu, então, milorde de Bedford, e meu caro Lorde Gloster e meu caro Lorde de Exeter, bondoso primo, e vós meus soldados, até à vista!
Bedford -Adeus, bom Salisbury. Tenhas sorte.
Exeter – Adeus, bondoso lorde, sê valente. Aliás, faço-te injúria assim falando, que foste modelado na coragem.
(Sai Salisbury)
Bedford – É nobre no valor e na bondade.
(Entra o Rei Henrique.)
Westmoreland – Oh, se agora tivéssemos ao menos dez mil dos homens que imobilizados se encontram na Inglaterra!
Rei Henrique – Quem deseja tal coisa? Westmoreland? Não, caro primo; se fadados estamos para a morte, a pátria em nós já perde muitos filhos; mas se vivermos, quanto menos formos, maior será nosso quinhão de glória. Deus o decida…
Assim começa o carismático discurso do rei, na iminência da grande batalha em Azincourt, território francês, informava minha avó com uma certa emoção, antes de prosseguir, fazendo-me participe desse momento histórico imortalizado na obra shakespeariana, que transcorre no dia 25 de outubro de 1415, dia de São Crispiniano; dia que toda a Inglaterra passou a celebrar em memória da Batalha e de São Crispiniano, sapateiro santificado pela devoção popular.
‘’Deus o decida…’’, disse o rei. E, continuando:
Rei Henrique – Não desejes, peço-te, nenhum homem a mais do que os que temos. Por Deus! Não busco ouro nem riquezas; não procuro saber quantas pessoas à minha custa vivem; não me aflige ver alguém envergando minhas roupas. Essas coisas externas não me afetam. Mas se é pecado ambicionar a gloria, sou o maior pecador que está com vida. Não, por Deus, caro primo, não desejes nenhum inglês a mais, que não me agrada perder a parte da honra que me fora preciso dividir com mais um homem! Por minha esperança! Oh! não queiras mais ninguém. Ao contrário: é de vantagem, Westmoreland, anunciar às tropas que se alguém se sentir acovardado, poderá retirar-se antes da luta; obterá passaporte e, para a viagem, coroas da bolsa. Não queremos morrer na companhia de quem receia perecer conosco. Hoje é dia de São Crispiniano: quem conseguir ficar hoje com vida, chegando salvo a casa, há de dar pulos de alegria ao ouvir falar na data, comovendo-se ao nome Crispiniano. Quem neste dia não perder a vida, e chegar à velhice, há de todo ano, na véspera, dizer para o vizinho: ‘’Mais um dia de São Crispiniano!’’ arregaçando as mangas, mostra as marcas e dirá: ‘’Todas estas cicatrizes são do dia de São Crispiniano’’.
Todos os velhos esquecem; mas embora fique tudo esquecido, hão de lembrar-se com minúcias dos feitos deste dia. Em suas bocas serão nossos nomes tão familiares como termos de uso caseiro: o Rei Henrique, Salisbury, Gloster, Bedford, Warwick, Talbot e Exeter serão com alegria relembrados ao toque de seus copos transbordantes. Esta história os valentes hão de aos filhos transmitir, e de agora ate o fim do mundo não poderá jamais ser pronunciado o nome de Crispim Crispiniano sem que lembrados todos nos sejamos. Nós, poucos; nós, os poucos felizardos; nós, pugilo de irmãos! Pois quem o sangue comigo derramar, ficará sendo meu irmão. Por mais baixo que se encontre, confere-lhe nobreza o dia de hoje. Todos os gentis-homens que ficaram na Inglaterra julgar-se-ão malditos por não terem estado aqui presentes, e hão de fazer idéia pouco nobre de sua valentia, quando ouvirem alguém dizer que combateu conosco neste dia de São Crispiniano…
(Volta Salisbury)
Salisbury – Meu soberano lorde, vinde logo; os franceses estão numa admirável disposição de luta e se preparam para nos atacar sem mais demora!
Rei Henrique – Tudo teremos se tivermos brio.
Westmoreland – Morra quem se mostrar fraco e indeciso.
Rei Henrique – Então, primo, não queres mais auxilio da Inglaterra?
Westmoreland – Prouvera a Deus, meu príncipe, que vós e eu, tão-somente, aqui estivéssemos, sem mais auxilio, para sustentarmos esta batalha real.
[Ao meu amigo Albérico Batista da Silva.]