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O dia em que eu quis ser loira

Com a verve que lhe é peculiar, Colaboradora de Navegos, jornalista, pedagoga e filosofa, relembra aqui um capricho que quase a transformou de morena em loira.

*Nadja Lira

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Sempre me considerei uma pessoa forte, determinada, resoluta e segura nas minhas decisões, gestos e atitudes. Contudo, é inegável que também, em algum momento da minha vida, senti uma profunda necessidade de que minha postura diante de determinadas situações fosse aprovada por terceiros, o que me deixava bastante incomodada. Para resolver esta questão, decidi investigar no âmago do meu ser, as razões que me levavam a agir desse modo. Então fiz uma profunda introspecção para descobrir as razões pelas quais, a aprovação dos outros tinha tanta importância para mim. Durante esta viagem ao meu interior, descobri muita coisa que me deixou alegre e outras tantas que me causaram tristeza, mas nessa imersão passei a me conhecer melhor. Revivi, por exemplo, meus tempos de criança nos quais eu vivia igual a uma princesinha, recebendo a atenção e o carinho exclusivo da minha família.

Sendo eu a única menina de família formada por sete tios, nada mais natural do que ser a detentora de toda a atenção dos adultos à minha volta. E mais: como era uma menina obediente e educada, conforme discurso dos meus familiares, cada vez mais eu angariava, por merecimento, a dedicação de todos. Para a minha família, eu era ainda era uma menina muito bonitinha, assim como são todas as crianças. Minha mãe relata que eu era moreninha, da cor de jambo, tinha o cabelo bem lisinho e as pernas muito bem torneadas. Isto sem contar que falava corretamente, apesar de ser tímida.

Este mundo no qual eu encarnava a figura principesca, durou por sete anos, até que a cegonha decidiu acabar com meu reinado e trouxe um novo ser para o seio da nossa família. Diferentemente de mim, que guardava uma grande semelhança com meu pai, a menina recém-chegada era loira e lembrava a imagem da minha mãe durante sua infância e adolescência. Com a chegada do bebê, como é natural, todas as atenções se voltaram para aquele serzinho que precisava de cuidados e atenção. E assim, eu me senti rejeitada, porque todo o carinho, zelo e atenção que sempre recebera, agora tudo era destinado ao novo serzinho. Mas, mesmo assim, eu era louca pela minha irmãzinha e queria participar dos cuidados que lhe eram dispensados. E minha mãe, com muito cuidado, aninhava o bebezinho nos meus braços, enquanto ela cochilava.

Nestes momentos, as pessoas olhavam a cena e diziam algo que eu não conseguia entender: “É uma mosca no leite”! Os adultos riam enquanto eu ficava a ver navios, sem entender coisa alguma. Só depois de muito tempo compreendi que a referência dizia respeito ao fato de eu ser morena e a minha irmã loira. Esta comparação durou por muito tempo e começou a perturbar minha cabeça. Não me sentia bem por ser compara a uma mosca. Além disso, meus tios, primos e vizinhos passaram a dizer que eu havia ficado “no canto”. Que eu perdera o trono e que todas as atenções agora, eram destinadas à uma nova princesa, branca e loira. De princesa eu passara a ser a Gata Borralheira. Eu imaginava ter perdido não apenas a atenção da família, mas também o amor de todos e passei a chorar pelos cantos. Os adultos, que anteriormente me bajulavam, agora só tinham olhos para a menina loirinha, que só fazia comer e dormir, sem imaginar o tormento no qual havia transformado a minha vida. O cabelo loiro da menina foi tão elogiado, aplaudido e exaltado, que eu me envergonhava do meu, tão pretinho e tão lisinho. Então procurava um lugar para me esconder e chorar. Cheguei a rezar e pedir a Deus para me fazer loirinha também, e assim voltar a receber a atenção dos adultos. A situação ficou tão insuportável para mim, que certo dia pedi a uma prima que morava na casa de vovó e já era adulta – Tereza – de saudosa memória – que comprasse água oxigenada para pintar meu cabelo de loiro.

Assim, talvez, as pessoas voltassem a gostar de mim e eu voltaria a ter paz. Foi então que ela, com a maior paciência do mundo, me disse que cada pessoa tem suas particularidades e são estas diferenças que fazem cada uma ser bela à sua maneira. Ela ainda explicou, que se eu colocasse água oxigenada no meu cabelo, não ficaria bonito como eu imaginava. Sendo morena, eu não iria combinar com o cabelo loiro. Sem contar que o loiro não duraria por muito tempo. Ela ainda me convenceu de como o meu cabelo lisinho e preto era bonito. Como minhas pernas bem torneadas eram bonitas, enfim, eu era uma menina linda, inteligente. Além disso, eu podia comer sozinha e tomar banho sozinha. Enquanto isso, o bebê precisava da ajuda de um adulto para tudo. A conversa surtiu efeito, e eu acabei me convencendo de que realmente era uma menininha muito bonita e superei as “brincadeiras” que os adultos faziam, sem ter noção das dificuldades que geraram na minha cabeça.

Depois desta viagem introspectiva, descobri as razões que me levavam a sentir necessidade da aprovação dos outros para as coisas que faço, e particularmente a aprovação da minha mãe. Tudo esclarecido, tudo superado e hoje, brinco com minha irmã, sobre o fato de sermos tão diferentes. Cada uma com seu estilo. Costumamos dizer que ela é branca por ter nascido durante o dia. Eu sou morena por ter nascido à noite. A verdade, porém, é que fui eu quem nasci durante o dia. O importante é que independentemente de nossa pele ter cores diferentes, de termos gostos e estilos diferentes, nossa relação é profundamente amigável e prazerosa. Sentimos orgulho uma da outra.