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O ‘divo’ wagneriano

Colaborador de Navegos perfila barítono homoafetivo que desafiou a polícia nazista e encarnou em seu tempo a grandeza do universo musical wagneriano.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

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Este é o terceiro, de três artigos, sobre gênero e a Bayreuth de Wagner. O primeiro você encontra aqui: https://www.navegos.com.br/o-feminino-no-homem-wagneriano/ e o segundo, aqui: https://www.navegos.com.br/a-sociedade-dos-homens-mulheres/ .

O principal tenor wagneriano em Bayreuth dos anos 30 e 40 foi Max Lorenz. De voz metálica brilhante e também adequadamente baritonal, um legítimo tenor heroico, dotado de porte e presença cênica que harmonizavam com a visão pangermânica daquele período: alto, branco, loiro e com um par de coxas impressionantes que os dramaturgos gostavam que exibisse no palco. E a interpretação? A impostação da voz de Lorenz nunca parecia chegar ao cansaço. Mesmo depois de quatro horas de Siegfried, ele emitia feixes de luzes sonoras que, ao final do drama, no “leuchtende Liebe, lachender Tod”, sua voz atlética ainda erguia os pesos descomunais e sobre-humanos exigidos na partitura. Hoje, os tenores chegam aos cacos nesse ponto da obra. Alguns são encobertos pela orquestra e precisam se esgoelar.

Lorenz sabia que tanto seu porte quanto sua voz impressionavam. Seus movimentos cênicos lentos, demorados e majestosos, ondas quebrando-se no deleite de êxtase do auditório, noutras vezes, parava no centro da cena para a música banhar de encanto sua presença estática e viril, máscula e poética, enquanto os arcos dos violinos desenhavam, luxuriantes, as curvas masculinas de sua presença. Era um monumento vivo à honra e à beleza heroicas do canto wagneriano. Seus braços extremamente alvos, quando os erguia em cena, cantavam o debruçar da alvorada derramada em luz sobre os alpes, sua musculatura.

Toda essa graça maravilhosa de homem e de artista esteve em perigo por conta dos ogros nazistas.

Para desespero deles, o arquetípico herói wagneriano dos palcos, travava duetos sensuais com outros homens na cama. Como ousava pisar no templo de Bayreuth? Porém, como dizer isso para Winifred Wagner, já viúva de Siegfried, e matriarca do clã? O destino conspirava a favor dos nazistas… Uma tempestade se formou e caiu em torrentes de escândalo: os homens que Lorenz levava para o seu palco não eram, de fato… ainda homens…

Na ribalta de Lorenz, ele brilhava com rapazes menores de idade. Jovens rapazes que conhecia através das associações “Hitler-Jugend”, a Juventude Hitlerista. Mas aqui precisa ser feita uma contextualização, a maioridade, na Alemanha Nazista, era alcançada aos 21 anos. Em um dado momento, Hitler conversa com Winifred sobre a possibilidade de Lorenz ser preso, por conta de sua conduta “imoral e cheia de vícios dos judeus” que tipificava os crimes do parágrafo 175 do código penal então em voga no III Reich. O parágrafo 175 tipificava como crime qualquer atividade homoafetiva. Essa lei existia na Alemanha desde 1871, mas foi endurecida pelos nazistas a partir de 1935. Na sua antiga versão, eram puníveis atos em que ocorressem penetração, na versão nazista, um mero abraço social poderia ser motivo de seis meses de detenção, caso se provasse que um dos abraçados, ou a dupla, estava excitada.

Winifred, em resposta, disse que o Festival poderia ser fechado, porque apenas Lauritz Melchior cantava como Lorenz, mas ele tinha contrato com o Metropolitan de Nova Iorque, sendo difícil o teatro estadunidense ceder sua grande estrela por um mês inteiro todos os anos. Por fim, a pena de Lorenz foi de seis meses e no devido tempo ele estava de volta aos palcos wagnerianos. Seguindo um conselho de Winifred, ele se casa. Mas pareceu que foi para provocar Hitler e Goebbles. A escolhida era judia: Charlotte Apel, chamada carinhosamente de Lotte.

Quando Lotte morre, em 1964, seu irmão James escreve, de Israel, uma carta para Lorenz, nela se lê: “O que você fez nas relações humanas sempre será um modelo para mim: durante toda a era Hitler você permaneceu leal a sua esposa judia e, além disso, manteve minha abençoada mãe escondida em sua casa. Sempre me lembrarei disso com profunda gratidão”.

Os sofredores se atraem e se protegem. Lorenz sofreu na vida a perseguição nazista por ser homoafetivo, assim como os judeus por serem judeus. O reconhecimento do sofrimento mútuo ajudou e ajuda na construção da compaixão e do companheirismo. A união de Lorenz e Lotte, um homoafetivo e uma judia, dois elos considerados fracos e inferiores no espaço e no tempo em que se encontravam, é a vitória da leveza sobre a brutalidade, da civilização sobre a barbárie.