*Franklin Jorge, Editor de Navegos.
Antonio Carlos Villaça é, em sua concretude despretensiosa, um ser dominado pela inquietação interior. Um escafandrista da vida total, entregue à captação da vida multiforme e inexaurível.
Sabendo precisamente porque escreve, escreve porque escrever é para Villaça algo tão misterioso e secreto como o ato de amar. Ele próprio o afirma sem rodeios: Escrevo porque em mim escrever é uma forma de viver. De viver e de conviver.
Thomas Mann disse que os escritores são seres malditos. Que a literatura é maldição, no que concordaria Villaça, um homem modificado pela literatura. A maldição que salva, na síntese de Clarice Lispector, que Villaça encontrou em Brasília e Porto Alegre, durante reuniões de escritores, bebendo café com cola-cola para espantar o sono assassino.
Em O Livro de Antônio [1974], Villaça escreve talvez a página mais abissal da literatura contemporânea, ao transmutar em literatura a circunstância que reuniu, uma noite, na casa do senador Severo Gomes, na serra da Bocaina, além do dono da casa, Carlos Lacerda [apresentado sob o pseudônimo de Montezuma], o Padre Godinho, Dom Abade, Stephan Osward, rapaz rico, filho de sueco e brasileira, Renan e Voillume, num diálogo noturno de cunho metafísico, misterioso, sob a égide do perene Baudelaire, não do Baudelaire que passeava com a sua tartaruga pelas ruas de Paris e pintava os cabelos de verde.
Memória na fronteira da ficção, sintetiza Villaça dois momentos inesquecíveis vividos pelas mesmas pessoas, nos cumes iniciáticos da serra, numa sala penumbrosa, à luz de candeeiros, e na orla do mar, em Parati. Montezuma, passional e frio, de quem Salazar disse que teria o poder, se soubesse calar-se, avulta nesses dois momentos magnos da criação, em páginas densas e luminosas, perfeitamente villacianas.
Dois momentos e as mesmas personagens. Padre Godinho, deputado e erudito morto há uns dois anos; Dom Abade; Lacerda; Stephan Osward, moreno e de olhos azuis, filho de suíça e mulata brasileira, farto de inócuos divãs; Severo Gomes e a Morte, que nos colocará novamente Dante do mistério da infância, na grande hora da revelação. E Villaça?
Bocaina e Parati, divisores comuns de aventuras distintas. Momentos culminantes, capturados na malha de uma escritura que enseja aos mestres sentimentos ambíguos de admiração e inveja. O litoral radioso e a serra adâmica, o mar aberto e a sombra de árvores velhas, velhíssimas, tão unidas e juntas, como se compusessem uma estranha ourivesaria vegetal há quase dois mil metros do nível do mar sempre recomeçado.
A travessia de lancha sobre o mar solitário de Angra, que começa ou termina em todas as praias do mundo. Montezuma [Lacerda], Villaça, Luis Fernando,Durval, Marco Aurélio… Litoral quase vazio, àquela hora, umas praias distantes, um longo silencio túmido. O verde repousante.
Como um barco de Homero, a lancha vivaz perfurava as águas, observa Villaça. O sol os convida a ir longe. Montezuma domina a travessia. Quem haverá mais solitário e loquaz do que ele?
A tarde agora é noite em Parati. E vozes se cruzam com volúpia no restaurante onde Montezuma dançou. O humano é assim, sintetiza Villaça. Vário. A fragilidade humana atrai e define Villaça, como escritor e humanista integral, atento ao espetáculo da vida. Como a arte que tem de vir assim de muito longe, da infância, da morte, de velhos caminhos perdidos na memória, para reviver num minuto, subitamente, como síntese. Como vida. Ora, diz-nos Villaça, o senhor das palavras, o escafandrista da vida total. Literatura é vida ou não é nada.