*Franklin Jorge
Nascido e criado em Itapecerica da Serra em 1990, acaba de concluir seu quarto livro, Relato de um desgraçado sem endereço fixo. Sua experiência, como escritor, difere peculiarmente do que sabemos sobre outros escritores. Ele controla todo o processo e ao mesmo tempo aponta em uma nova direção: são os leitores que vão à sua procura.
Abaixo a entrevista que ele concedeu à Navegos:
Como define o ato de escrever?
Eu sou um autor nascido e criado na periferia de São Paulo (Itapecerica da Serra). Já vi de tudo nos vários bairros onde morei: pessoas mortas na viela de casa, crianças chorando de fome e caminhando na rua de terra com pés descalços; idosos catando papelão e latinha para vender no ferro velho, muita gente em situação de rua remexendo a lata do lixo, atrás de comida… Na escola, os estudantes iam apenas para comer. Em minha casa ninguém me incentivou a ler. Eu descobri o hábito da leitura sozinho. Quando comecei a criar as minhas histórias — contos e recortes urbanos sobre essas pessoas — eu não sabia que um dia poderia publicar um livro.
Quando publiquei a minha primeira obra, muitas pessoas se identificaram com o que estava escrito no meu livro O diabo na mesa dos fundos. Chegavam a me perguntar se todas aquelas coisas haviam acontecido de verdade… Certa vez uma professora acadêmica, por meio de uma live nas redes sociais, me perguntou: “O que é escrever pra você?” Dei risada e falei: “Escrever para mim é matar um acadêmico por dia”. A professora riu de nervosismo e eu fiquei muito feliz que a minha provocação tivesse surtido efeito, mas escrever pra mim não se resume a isso, já que eu conheço muitos acadêmicos que vieram da favela, e estão representando a periferia nas universidades. Alguns deles até escreveram sobre meus contos. Portanto, escrever pra mim é, antes de qualquer coisa, um ato de resistência, de subversão e de ideologia.
Como descobre o tema de seus livros?
Muitas vezes eu sou o próprio tema para as minhas histórias: aquele cara que entrou no boteco uma noite para tomar uma cerveja em paz e quando foi ao banheiro e ao voltar percebeu que algo muito estranho havia acontecido ali, pois a garrafa estava completamente vazia e um bêbado na mesa da frente rindo como se tivesse me pregado uma boa peça. Eu já me vinguei desse cara escrevendo o conto “O diabo na mesa dos fundos” onde um ex- presidiário matador de aluguel é tema central daquela pequena trama. Outro dia, vindo de um chorinho, pela manhã adentrei outro bar e ouvi uma mulher reclamando com o cara atrás do balcão que ela queria apenas um trago. Observei rapidamente o jeito de ela falar e quando cheguei em casa escrevi em apenas cinco minutos o conto “A rainha da zona”, monólogo de uma ex-prostituta incentivando uma moça a não ir pelo mesmo caminho que ela, porém sem moralismo fala de suas conquistas e como chegou a se tornar a dona da boate “Sonho azul”. Os contos nascem do espanto da vida, de seus absurdos e das palavras que as pessoas proferem nos ônibus, nas estações de trem, ou na fila do banco. Algumas dessas histórias surgem de uma necessidade arrebatadora que eu não consigo controlar. Isso aconteceu quando escrevi o livro Parágrafos Fúnebres sobre a pandemia dentro do sistema carcerário. Logo no começo da quarentena as pessoas estavam reclamando que não aguentavam mais ficar presas em casa. Então, um belo dia, lendo uma matéria da Revista Piauí, sobre a situação dos presidiários fiquei chocado quando um preso disse que estavam fumando o pó que raspavam do cabo da vassoura e que muitos deles não tinham álcool gel, máscaras pra se proteger do vírus e nem mesmo água que pudessem beber e lavar as mãos. Essa história eu escrevi em uma manhã e tenho recebido bons retornos dos leitores de todo o Brasil.
Escrever seria uma forma de apropriação da realidade?
Eu gosto de pensar a palavra “realidade” de uma forma filosófica, porque não sei se ela, a realidade, realmente existe. Pelo menos no campo da filosofia eu fico me questionando se ela existe ou não, pois quando lemos O mito da caverna de Platão, O mundo como vontade e representação, de Arthur Schopenhauer, ou mesmo A crítica da razão pura de Kant, percebemos que esses três filósofos estão falando quase a mesma coisa sobre o mundo real: as coisas a nossa volta são meras impressões daquilo que realmente existe. No entanto, em nosso mundo, há também a realidade dos problemas sociais, que vivenciamos todos os dias nas periferias. A partir dessa realidade que me aproprio, eu crio o meu ponto de vista, o meu jeito de enxergar o mundo, de ver a cultura e de como a visão eurocêntrica ainda é predominante, até mesmo na forma de como enxergamos a realidade pela lente desses filósofos.
Há um boom literário ou apenas editorial no Brasil?
Não sou um especialista em mercado editorial, mas sou um leitor e como leitor, que não sai das livrarias e dos sebos, tenho percebido a quantidade de escritores tumultuando o mercado de forma subversiva. Principalmente os novos literatos, que têm trazido assuntos tão urgentes à sociedade: como o racismo, a questão da fome, as causas feministas e tantas coisas mais, que estão na pauta hoje em dia. Seria quase impossível não ter gente produzindo literatura sobre isso, e há pessoas querendo consumir essas obras. Na verdade, na minha visão, o que de melhor tem acontecido nesses últimos vinte anos é a literatura que vem sendo realizado nas periferias, desde os saraus, até os slans, e autores independentes, que não esperam os leitores irem às livrarias pra uma tarde de autógrafos, são artistas dos quais faço parte, que estão olhando no olho do leitor, que estão criando leitores, fazendo um reboliço no mercado editorial, porque, afinal de contas, muita gente tem percebido a qualidade dessas obras.
Fale-nos de seu último livro.
Relato de um desgraçado sem endereço fixo é um livro que faz parte de uma série de bolso que eu venho publicando durante a pandemia, o primeiro foi Parágrafos fúnebres sobre o coronavírus dentro da prisão. Neste novo livro eu narro a jornada de um rapaz periférico que, em meio às adversidades, tenta vencer no mundo dos livros, mesmo sem o apoio familiar. Ele persiste tendo que conviver com os malandros das ruas e morando em uma pensão de uma mulher chamada Martha. O texto é autobiográfico, da época em que fiquei sem casa para morar e passava a maior parte do tempo lendo livros na biblioteca municipal.
A internet facilita a vida do escritor?
Eu sempre vendi meus livros nas palestras das escolas, onde eu era convidado para falar com os estudantes, também nas feiras literárias como a Flip e em outros eventos, mas logo quando chegou a pandemia eu me perguntei: “E agora, como farei para que esses livros cheguem nos leitores?” A pergunta ricocheteou nas paredes dos meus pensamentos e imediatamente eu tive a resposta: “Ué! Pela internet eu posso divulgar, imbecil!” Antes disso, quando eu vendia pelos teatros e bares noturnos, eu já postava as fotos dos leitores que haviam comprado meu livro, mas depois da pandemia isso se intensificou e comecei a ler trechos dos livros e postar no meu instagram @barbosaescritor, pelo facebook e grupos de literatura. Então, gente de todo o país e fora dele começou a me pedir livros graças às redes sociais: toda semana vou ao correio enviar minhas obras. Daqui a pouco, antes de terminar de responder a essas perguntas, irei despachar mais uma remessa.
Fale-nos das vantagens e desvantagens de vender seus livros diretamente aos leitores.
A vantagem é que eu conheço muita gente boa e recebo, quase todo dia, um retorno de alguém dizendo que gostou do livro, querendo saber sobre a minha próxima publicação, de como eu criei aquelas histórias e, claro, o dinheiro cai diretamente na minha conta. Isso possibilita que eu publique outros livros. As desvantagens são mínimas, mas ainda assim são desvantagens: perde-se muito tempo divulgando, tendo que enviar os códigos dos livros postados, às vezes você precisa parar de ler um livro monumental, como Guerra e paz, para ir ao correio enviar mais livros, mas eu acho que tenho mais vantagens do que desvantagens.
Como descreveria a chamada “quebrada”?
A quebrada, ou favela, como eu gosto de chamar, tem muitas facetas: é um lugar onde as mães choram por seus filhos que elas deixaram em casa sem um nada dentro da barriga e vão ao centro da cidade cuidar das crianças de outras mulheres. É onde a tal da realidade gosta de rir da nossa cara todos os dias, quando somos despejados de nossos barracos. É onde quem tem pouco, ou quase nada, ajuda o próximo e ainda consegue sorrir com alguma esperança. t quebrada, ou favela, como eu gosto de chamar, é o lugar onde muitos querem passar longe, mas a maioria desses favelados mora um amontoado no outro, dentro de suas casas de madeiras escangalhadas, ou em seus bangalôs construídos debaixo de chuva e de sol, que nem sempre a gente pode chamar de nosso, porque foi construído no terreno da prefeitura e eles vêm ávidos querendo colocar nós pra morar embaixo da ponte. A quebrada, ou favela, como eu gosto de chamar, é uma mulher grávida prestes a parir mais um abismo social. Ali ninguém chora à toa. Tampouco você verá um sorriso de plástico, mas a quebrada também é potência, porque foi com a força de seus braços que os prédios das cidades foram erguidos. A favela, ou a quebrada, é onde o que há de melhor da cultura do nosso país, porque no final das contas, os ricos acabam copiando tudo o que é nosso e depois dizem que periferia é lugar de gente ignorante, que não gosta de livros, quando na verdade eles jamais souberam descrever esse lugar melhor do que nós mesmos.