*Renard Quintas Perez
Um belíssimo livro, a começar pelo titulo [e subtítulo] magnificamente adequado. Franklin Jorge nos dá um retrato tão expressivo da capital do Rio Grande do Norte, um retrato tão sensível. Seu microcosmo, sua atmosfera.
O Spleen de Natal [–Romance de uma Cidade, vol. I, Edições Amarela, 1ª edição, 1996] tem um tom a bem dizer proustiano nessa sucessão de depoimentos de vidas de figuras deste ou daquele meio e situação social – sobretudo artistas, escritores de outras gerações, gente simples do povo, tipos pitorescos, através dos quais a cidade vais e entremostrando, se apresentando.
A “compreensão” de Natal. E a forma em que o livro é vazado: os diversificados blocos de entrevistas sem os títulos que seriam de esperar e que dão à leitura uma continuidade [assim como uma nova técnica] de romance. E que começando em Palmira e sua temática e terminando por Jorge Fernandes traz, de certo modo, sua linha e seu nível.
Não há dúvida de que era Franklin Jorge, repórter experimentado, a pessoa indicada para fazê-lo. O entrevistado, seja ele qual for, é apresentado em suas características, seu “espírito” – a linguagem captada, o detalhe do gesto, do traje. O mesmo feito em relação aos ambientes – local, interiores –, torna a obra, por este lado, altamente visual.
Depoimentos que se lêem com um sorriso, uma emoção [os desses moradores das Rocas, favela do Maruim], Redinha e outros bairros, cada figura e local escolhidos sabiamente. E a palavra certa, uma poesia contida, que sensibiliza. Tipos e assuntos que se vão sucedendo e se superpondo, e que, através do material tratado, a Natal de hoje se une a de ontem [no depoimento de veteranos, conhecedores ou participantes desse passado, com ênfase no campo cultural], dando em seu conjunto a história, a alma da cidade. Uma Natal intemporal. É o livro a que ela fazia jus.
Nada parece ser esquecido. A cidade com o seu sol, seu rio, seu mar, seu mistério. Seu folclore. Os comentários dos visitantes, ou dos que a escolheram como lugar de adoção. A mais diversificada humanidade. A presença latente de Câmara Cascudo. Pequenas jóias de humor, de filosofia, pinçadas nos respectivos meios, do cultural ao bas fond. A cidade a nu. A nata e a escória, a beleza e a sordidez apanhadas no próprio ambiente.
Em realce, os bastidores do meio artístico, da juventude de ontem e de hoje. De pintores e fotógrafos a compositores, cantores de rádio, atores. Seus depoimentos. A frase que vale uma vida: “Desde criança eu era louca para morar na cidade grande”; “Teatro é uma coisa do meu próprio eu” [Águeda Ferreira]; “Político tem sempre interesse escondido” [Raimundo Rabelo, presidente da Colônia de Maruim]; “É o meu traje a rigor que incomoda eles” [os policiais], Blecaute, 27 anos, poeta e artista plástico ambulante, suspeito por sua aparência {“produções”, como ele prefere dizer}; “Conheci Cascudo dormindo e não perdi tempo: roubei um bom livro de sua biblioteca. Afinal, eram tantos…” [Odosvaldo Portugal Neiva, jornalista e andarilho]. As admirações numa bizarra onomástica filial [de Marcelus Bob, pintor,39 anos, potiguar]: Radharani, Augusto Cézanne, Narayama, estes bisnetos de Isabel da Transfiguração do Senhor [nome Do dia da folhinha]. Um microcosmo que extrapolando de uma cidade em si, alcança uma dimensão mágica.
O Romance de uma Cidade. O sentimento de que, em termos não ficcionais, seu autor encontrou a forma ideal para fazê-lo. E a nossa alegria de ver que esse autor é Franklin Jorge.
*Prefácio da 2ª edição revista e ampliada de O Spleen de Natal [v. 1-3, Edufrn, Natal, 2002, esg.