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O Eternauta que fazia falta

Colaborador de Navegos divulga e comenta produção em HQs considerada a um tempo genial e clássica, feita por criadores da América do Sul, abre perspectivas nova a um gênero cult e popular.

*Renato de Medeiros Jota

Quando O Eternauta de Héctor Gérman Oesterheld e Francisco Solano Lópes estrearam na primeira semana de setembro de 1957, no Hora Cero Suplemento Semanal do Jornal argentino. Tratava-se da terceira revista publicada pela editora que Oesterheld havia fundado naquele ano em parceria com o irmão, Jorge Mora. Ambos faziam os textos das histórias, mas a maior parte do encargo ficava por conta de Héctor. Mais experiente, ele já somava, à época, quase dez anos na área dos quadrinhos.

A história na época de 1957 de O Eternauta de Oesterheld e Francisco Solano Lópes era publicada em tiras semanais no semanário, o que destoava do formato de quadrinho padrão. Uma década depois, Oesterheld agora auxiliado por Alberto Breccia retornaria ao tema, só que O Eternauta seria produzido no formato de página de quadrinho, mais especificamente no dia 29 de maio de 1969 nas páginas de uma revista argentina chamada Gente (uma espécie de revista Caras na época) em um formato mais compilado do que o então produzido em 1957 no semanário Hora Cero. Considerando essas informações vamos analisar sobre o motivo de O Eternauta de Oesterheld, Francisco Solano Lópes e Alberto Breccia ser considerado uma das maiores HQs do mundo capaz de influenciar diversos artistas de hqs do mundo.

Observando a HQ original e a concepção do tema ficção cientifica Oesterheld tinha a vontade de retornar ao gênero, sódesta vez tendo Solano Lopes a responsabilidade de desenha-a. Entretanto, para fazer isso Lopes pediu a Oesterheld para que a hq, mesmo sendo uma ficção cientifica, deveria ser o mais próximo da realidade e foi isso que o roteirista fez. A idéia do roteiro do Eternauta era localizar os eventos da HQ na Buenos Aires, o que era inovador para época já que a ficção cientifica nos quadrinhos de 1957 abordavam o tema tomando como base a fantasia ou as viagens espaciais ou lugares adequados ao cânone do genro (geralmente, Eua ou Europa). Outra diferença era mostrar as ruas e lugares reconhecíveis para o leitor da época como os Estádio do time de futebol do Boca Junior, mostrando os monumentos locais do Obelisco no centro da cidade e outros lugares habituais para o publico portenho. A metalinguagem da história esta presente, quando o personagem Eternauta aparece sentado de frente para um roteirista de quadrinhos, na qual relata para este suas aventuras no século XXI. O desenvolvimento psicológico dos personagens é outro ponto forte do quadrinho/tira, temos O Eternauta/Juan Calvo, Elena a “leitora” sua esposa, Martita sua “herdeira” Favalli professor de física, Lucas Herbert bancário, Polsky aposentado, estes três últimos personagens são amigos de Juan e contribuem para o avanço da história e carga dramática da história.

A História começa como já mencionado com o relato do Eternauta, sobre como tudo começou em um dia normal em que Juan Calvo, Favelli, Herbert e Polsky jogavam cartas, aparentemente em um dia normal e a partir daí vai desenvolvendo a história aos poucos, e avançando nos acontecimentos. A primeira noticia que causa estranhamento vem do rádio sobre um acidente nuclear acontecido nos EUA e que liberou um pó cinza no ar. Em seguida as luzes da casa de Juan apagam e eles percebem, em seguida, um estranho fenômeno que ocorre fora da casa, essa cena precede o que vem a seguir. Uma neve mortal começa a cair e aos poucos vai fazendo vitimas, o primeiro do grupo a morrer é Polsky e logo viria outros. A trama no geral vai se aprofundando em um misto de mistério e espanto, em que cada personagem busca entender o que está acontecendo. Na medida em que os acontecimentos vão se desenvolvendo e as situações vão aparecendo como na escolha de quem sairá da casa para buscar ajuda, sendo decidido no jogo de dados, o escolhido para tal façanha é Juan, mesmo contrariando Favalli e Herbert, constatamos o alto nível moral do personagem Juan Calvo/Eternauta.  Mas para garantir o sucesso de Juan é necessário encontrar uma roupa que talvez o salve da morte ao contato com a estranha neve cinza que caí lá fora. Uma roupa emborrachada de mergulho é escolhida por Favelli e Juan, na qual este último tinha em casa.

Esse rápido resumo inicial já dá uma noção da essência da HQ, ela é bem mais do que uma simples narração de ficção. Encontramos no Eternauta reflexões sobre a condição humana de sobrevivência, fraternidade, autruísmo, medo, compaixão, sentimentos humanos que valida as ações e atitudes de cada personagem sejam do Eternauta, de Favalli, de Elena e dos Aliens. As conseqüências do conflito para cada um, as ações e reações trazem mudanças, para os homens da cidade de Buenos Aires assim como para a própria cidade. Ela vira um campo de guerra, mas também um labirinto de mistérios que leva o Eternauta a questionar-se quanto àquela situação a ser real.

Os cenários mudam, conforme os personagens se movimentam nas páginas do quadrinho, ruas são labirintos, casas são casamatas onde abrigam e protegem as pessoas da neve mortal. A invasão alienígena pode ser interpretada também como uma metáfora para um clima de insegurança (ditadura militar?) que vinha se apresentando no horizonte com o estranhamento do outro, do diferente. Oesterheld parecia intuir na sua época movimentações ideológicas já existentes na Argentina, por parte da sociedade de seu país, provavelmente da área militar, antecipando o que estava por vir. Nesse aspecto, ameaças a liberdade e a outras inclinações políticas podiam ser observadas nas páginas do Eternauta naquela época. Oesterheld no Eternauta parecia antever o horizonte sombrio que estava se avizinhando em seu país e que nas próximas duas décadas desenrolaria nos crimes de uma ditadura. Nas páginas da HQ podemos observar uma profundidade humana, filosófica, em que os personagens pensam em sua existência diante do conflito, além de seu lugar em relação ao mundo que o cerca.

Penso que a revolução de Héctor Gérman Oesterheld  está na questão do lugar escolhido para desenvolver sua história de invasão alienígena. A escolha de utilizar o próprio país como palco do drama, ressalta o princípio de independência e identidade, de personagens reconhecíveis para o leitor portenho. São os cidadãos de Buenos Aires o liame dessa narrativa e seu ato de resistência evoca o espírito de coragem de um povo, isolado do mundo, luta por liberdade enfrentamento forças hostis a sua nação. Espero que essa resenha tenha despertado o interesse do leitor para conferir essa obra magnífica chamada O Eternauta e convido o leitor à conhecer um pouco mais do que é produzido em nossos vizinhos de fronteiras na America do sul.

Renato de Medeiros Jota – É pesquisador em Quadrinhos