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O eterno e o efêmero em Arthur Bispo do Rosario

Residente por quase 30 anos em hospital psiquiátrico em Jacarepaguá, produziu Bispo do Rosario uma obra intrigante que documenta o seu mundo imaginário sob diversas formas.

*Sérgio Medeiros

[email protected]

Eternos! Eternos, miseravelmente.

Carlos Drummond de Andrade

Por lo demás, yo  estoy destinado a perderme,

definiticamente, y solo algún instante de mi podrá

sobrevivir en el outro.

Jorge Luis Borges

Folheando um livro sobre Arthur Bispo do Rosario (o sobrenome serágrafado sem acento, conforme recomenda Luciana Hidalgo, sua biógrafa), encontrei uma foto que registrava alguns pequenos objetos criados ou reelaborados por esse artista, dentre os quais sobressaía, em primeiro plano, uma imagem possível de Odradek. Desejo discutir essa impressão, fruto do acaso. Quando, mais tarde, voltei a examinar a foto e dei com o carretel em questão, envolto em linha azul, já não tive certeza de que via (ou que vira) esse personagem misterioso, descrito por Franz Kafka e incluído, muito depois, no Livro dos Seres Imaginários, compilação de seres fantásticos eternos que devemos a Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero.

Ainda me pergunto, no entanto, se o carretel falante e imortal, imagem kafkiana do efêmero e do eterno, não seria realmente peça crucial dentro da obra de Bispo do Rosario, e, mais do que isso, um símbolo da obra total desse artista. E, naturalmente, uma das imagens possíveis do próprio Bispo, profeta confinado num manicômio. Essa incerteza não é menor nem mais insignificante do que outras que posso apontar, ao falar da obra de Bispo do Rosario.

Imortalidades

Para Bispo, cuja autoimagem era divina, pois ele afirmava ser, em certas ocasiões, o próprio Jesus, a imortalidade sempre teve garantia ontológica, por isso, talvez, pôde prescindir tanto da arte quanto da competição que existe entre os artistas. Isso consta de suas biografias. Assim, no livro Arthur Bispo do Rosário, o Senhor do Labirinto, Luciana Hidalgo comenta que seu reconhecimento póstumo como artista, dentro e fora do Brasil, “significaria nada” para aquele senhor que nasceu em 1911 e viveu quase meio século confinado num hospício de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde finalmente faleceu em 1989.

Talvez seja necessário, diante disso, elaborar aqui uma política da imortalidade, que permita expor, didaticamente, as estratégias que os artistas utilizam para preservar sua obra e garantir seu reconhecimento, sobretudo quando eles, os artistas, são filhos do ceticismo e não dispõem de uma garantia ontológica de sobrevivência póstuma.

Um teórico contemporâneo, Boris Groys, poderá ser útil, neste passo introdutório da discussão sobre o eterno e o efêmero na obra de Bispo do Rosario, artista que, segundo entendo, ainda se encontra em sua câmara-ardente, à espera de sepultamento. Para Groys, o artista é aquele que procura inevitavelmente colocar-se no seu túmulo, pois deseja para si um bom sepultamento. Contudo, esse artista (ou filósofo, pois Groys trata de ambos) não é, como Bispo do Rosario, um crente ou profeta, muito menos Jesus Cristo, logo ele estará sempre consciente da precariedade material da imortalidade que poderá desfrutar, como agente da cultura. A diferença entre Bispo e esse artista cético reside na interpretação que ambos dão ao próprio cadáver e, conseqüentemente, à representação do seu sepultamento. Entendida como garantia de longa duração (a única eternidade ao alcance dos céticos), a imortalidade do artista é artificial e se resume, grosso modo, a uma prática de velar conscientemente pela preservação da própria obra. Começa assim uma competição entre os artistas, vivos e mortos, à qual Bispo foi em vida de todo alheio. (Ele entra nessa competição depois de morto; voltarei a esse assunto, para chamar a atenção para a manipulação atual da sua imagem e, sobretudo, para aquilo que essa mesma manipulação correria o risco de deixar de fora, ou excluir da sua obra.)

Groys fala, então, dessa imortalidade artificial, que é uma política consciente, e mostra que as exigências culturais são também exigências do além, e destas Bispo entendia muito, já que ouvia vozes celestes que lhe ordenavam a reconstrução do mundo. “Começamos a ser criativos, de um ponto de vista cultural”, afirma Groys em Política da imortalidade, “quando desejamos produzir uma imagem de nós mesmos, isto é, quando nós nos transformamos em múmia, quando queremos dar-nos um perfil de cadáver. Quando representamos para nós mesmos nosso próprio sepultamento em livros, imagens, etc. É isso, e sobretudo isso, que alimenta inquietação.”

Se Bispo do Rosario se encontra, como afirmei, em sua câmara-ardente, onde sepultá-lo? Em que linguagem, em que nível cósmico depositar seu cadáver?

Se, como afirma Groys, todos nós nos preocupamos com o aspecto do nosso túmulo (gostaríamos de nos enterrar em livros, quadros, filmes etc.), então interessamo-nos, aparentemente, mais pelo corpo, pelo cadáver, do que propriamente pela alma. (Essa questão, como se verá, não poderá ser ignorada, no momento de decidir onde sepultar Bispo do Rosario.) O artista se angustia com a preservação do corpo, o santo, espera-se, com a salvação da alma. Bispo, profeta e artista, também se preocupou, e muito, conforme sabemos, com o aspecto do seu túmulo, e superou a todos, impondo-se, é-nos lícito imaginar, inicialmente ao Manicômio Juliano Moreira, onde erigiu sua vasta obra, como um egípcio numa pirâmide em construção, ilimitada, sem fim. (Maria Esther Maciel e Luciana Hidalgo o associaram a Noé, essa figura bíblica que é considerada o paradigma do colecionador da história da humanidade).

No que consistiria, então, a diferença entre ele, Bispo do Rosario, e o artista cético do século XX, o século do próprio Bispo? Haveria diferença, se considerarmos que ambos cuidaram da mesma maneira do próprio cadáver e desejaram se mumificar a si mesmos com idêntica obstinação?

A pirâmide

Num momento revelador do seu livro, Hidalgo afirma: “Seu Bispo era o felizardo morador de um salão rodeado por dez quartos-fortes para acomodar o seu mundo. A sala de espera do Juízo Final.” Isso lemos na página 125; algumas páginas atrás, porém, a autora arrisca outra interpretação, pois, na página 91, lemos: “Bispo só virava bicho quando alguém entrava sem permissão na sua pirâmide de pertences. Zelava por tudo com a altivez de um faraó. Afinal, construía cada milímetro da existência em miniaturas que carregaria junto ao corpo na passagem. Só que, naquela pirâmide, Bispo era o único escravo. Apenas ele trabalhava na construção, a serviço dos anjos.” Assim, no seu reino de entulhos, Bispo do Rosario transformou numa “galeria de arte” (locução que não pode ser usada de maneira irresponsável) um espaço nada desprezível do manicômio de Jacarepaguá, quando este passou por uma transformação na década de 1980 e os seus quartos-fortes foram desativados (neles eram confinados os loucos intratáveis). Essa “área privada” podia ser vista por aqueles que a visitaram, tal como se depreende das passagens citadas acima, como uma espécie de sala de espera ou, então, de pirâmide em construção. A autora não explora, entretanto, essas intuições, e a pirâmide é apenas mencionada en passant, sobretudo porque a câmara faraônica era, decerto, um aspecto do percurso de Bispo, o egípcio, ao qual ninguém não podia ficar indiferente, nem o mais causal e distraído visitante.

Chamar Bispo de egípcio nos leva de volta à questão, aludida rapidamente acima, acerca do cuidado com o cadáver após a morte. O faraó deveria não só decidir onde seria enterrado, mas também conseguir que seu cadáver continuasse vivo depois da passagem. Sabemos que Bispo se preparou espiritualmente para o encontro com o Criador, não poupando o corpo, antes sacrificando-o. Fez jejuns contínuos, por exemplo, ao longo da vida, pois almejava “ir secando”, a fim de atingir o estado físico ideal para fazer a passagem. O homem é o único carnívoro que pratica o jejum voluntário, afirma Régis Debray na abertura de Deus, um itinerário. Bispo rejeitava carnes e ingeria apenas frutas. O seu corpo seco, porém, não deveria se tornar imediatamente invisível, mas, ao contrário, um corpo glorioso, como o corpo da múmia, esse cadáver destinado a viver, como sonham não só os faraós, mas também os artistas, esses exímios mumificadores.

Bispo declarou, nos anos finais, quando sua pirâmide já estava erguida: “Preciso deixar de comer para ficar todo brilhoso, dos pés à cabeça, e aguardar minha ordem. Vou ficar transparente para subir ao céu na hora da passagem”. Percebemos, claramente (esse trocadilho é sério e pertinente), o que distingue a imortalidade de Bispo da imortalidade dos demais artistas: o interno de um asilo de Jacarepaguá aspira a uma vida no Reino dos Céus, enquanto os demais aspiram a uma vida na Cultura, na Tradição, enterrados “para sempre” na linguagem (livros, cds, dvds…). Aquilo que chamamos de sua arte (as miniaturas e as palavras, por exemplo, que constam da sua pirâmide), era tudo o que acompanharia Bispo nessa viagem ao além, ele devidamente vestido no “Manto da apresentação” e deitado na “Cama-nave”.

Peter Sloterdijk, ao comentar a obra de Debray, que discute os deslocamentos de Deus por diferentes mídias, para mostrar como isso O modifica, partindo dos monumentos pesados (a pedra) e chegando aos muito leves (o papel impresso), ressalta que a ciência das religiões se torna uma subdisciplina da ciência dos transportes, pois o divino vai mudando de mãos, passando dos arquitetos e seus monumentos para os arquivistas e seus pergaminhos. O corpo brilhoso de Bispo estaria vestido, como sabemos, num manto especial, bordado durante décadas por ele próprio. Esse aparato é parte de um todo mais vasto, que parece reunir a mídia egípcia (pesada) e a mídia hebraica (leve), de ambas Bispo se teria servido para poder ascender e apresentar-se a Deus, ou assumir, talvez, o trono de Deus. A arte de Bispo, então, é tudo aquilo que lhe permitiria ser finalmente transportável para o além, pesado e leve, assim como o Divino também se serviu dessas duas mídias para aparecer na Terra, no longo percurso que vai do politeísmo ao monoteísmo. O manto, a cama-nave, mais os objetos do universo que ele salvaria e apresentaria a Deus, tudo isso circundaria seu corpo seco cujo brilho redundaria, depois, numa transparência física, reunindo numa coisa só o efêmero e o eterno, a matéria e o espírito. (Esse esboço do pensamento de Bispo é necessariamente grosseiro e provisório.)

A visão religiosa ou mística de Bispo é fundamental e não deve ser empurrada para as bordas da sua obra, nem muito menos deixada de fora, como um ingrediente incompreensível ou indigesto. Naturalmente, Bispo morreu e foi enterrado na linguagem da arte contemporânea, graças a essas mídias (a leve e a pesada) que ele próprio tão minuciosamente entreteceu e que se destinavam a transportá-lo para outra esfera cósmica. Creio que podemos aceitar, agora, que o corpo de Bispo do Rosario, que supus ainda insepulto, já foi retirado da câmara-ardente e enterrado na linguagem. Como sucedeu, aliás, a tantos grandes artistas. Pode-se consultar, a esse respeito, um texto fundamental de Jorge Luis Borges, “Borges y yo”.

A monumentalidade da obra de Bispo o reteve na Terra, assim ele agora sobrevive como monumento da cultura brasileira. Bispo se tornou uma múmia tão pesada quanto o monumento egípcio que criou em vida. Mais do que escravo, ele é para sempre o prisioneiro desse monumento, feito em parte de miniaturas. As palavras incolores que Hidalgo utiliza, na página 190 da biografia de Bispo, para narrar seu sepultamento, revelam o que sucedeu: “A despedida de Bispo foi breve e entoada por vizinhos de agruras.” É incrível que, a seguir, ela expresse a seguinte convicção: “Partia o homem que driblara cinqüenta anos de manicômio para embarcar numa nave rumo ao reino dos céus. Uma vez no alto, seria reconhecido.” É extremamente doloroso, embora necessário, em face do que sucedeu e continua sucedendo, admitir, sem meias palavras, que Bispo foi, sim, reconhecido, mas reconhecido embaixo, na cidade efêmera dos artistas, desejosos de uma imortalidade artificial que lhes garanta pelo menos longa duração e extrema visibilidade. Um outro brilho, talvez, que é menos prenúncio de uma transparência divina do que de uma imortalidade na memória e nos arquivos dos homens. Enfim, Bispo conquistou definitivamente, por força das circunstâncias, sua imagem egípcia, monumental.

Em resumo, Bispo sabia (e esse saber não podemos ignorar, insisto, nem tachar levianamente de loucura) que, no seu maior momento de glória, ele se apresentaria corporalmente ao Pai eterno e a Ele mostraria sua obra concluída, um inventário da Terra. Ao mesmo tempo seu corpo, ou cadáver, brilharia até atingir a transparência, incorporando-se ao mais elevado nível cósmico. Esse brilho prévio e fugaz é uma etapa nessa ascensão, que o jejum, mas não apenas ele, asseguraria. Como os artistas e filósofos são motivados pelas exigências de outro além, feito de filmes e esculturas, eles há muito renunciaram, aparentemente, ao que Bispo sempre buscou.

O fio azul

Brilhoso ou não, o fato é que o corpo de Bispo circulou, em seus últimos dias, numa pirâmide. Por isso mesmo, sua arte absorveu com sucesso a refinada técnica dos mumificadores mais experimentados do Egito. (O lado hebraico do empenho desse nordestino gigantesco não está sendo abordado aqui, como o leitor já percebeu; gostaria de fazê-lo, porém, em outro ensaio, que tratará, espero, do papel do apocalipse em Bispo do Rosario, judeu nascido e crescido no Egito. O que, graças ao seu esforço pessoal, não estivesse reproduzido ou preservado na sua coleção, seria aniquilado no Juízo Final.)

Juntar, catalogar, preservar objetos do cotidiano — Bispo ouviu a vida toda vozes que lhe impuseram isso como uma obrigação, como um decreto divino que não lhe cabia questionar ou discutir. Nos dois livros sobre Bispo do Rosario que consultei, o de Hidalgo e o de Burrowes, o termo linha, com a especificação de que ela é azul, aparece várias vezes – é, portanto, esse fio que desejo seguir de agora em diante. Um fio que, espero, me levará de volta a Odradek, de todos os seres o mais efêmero e o mais imortal, o mais cotidiano e o mais extraordinário. (Recordo neste momento que, em A farmácia de Platão, um ensaio sobre questões egípcias e gregas, Derrida ensina que ler Odradek (ele na verdade não o menciona, parece-me), ou qualquer ser ou qualquer texto, é acrescentar-lhe um fio: “Reservando sempre uma surpresa à anatomia ou à fisiologia de uma crítica que acreditaria dominar o jogo, vigiar de uma só vez todos os fios, iludindo-se, também, ao querer olhar o texto sem nele tocar, sem pôr as mãos no ‘objeto’, sem se arriscar a lhe acrescentar algum novo fio, única chance de entrar no jogo tomando-o entre as mãos. Acrescentar não é aqui senão dar a ler.”)

Na Colônia Juliano Moreira os internos usavam uniformes azuis; Bispo desfazia essa roupa e reaproveitava os fios para tecer mantos especiais ou mumificar objetos, mas não apenas isso: as linhas dos uniformes reapareciam, também, nos estandartes bordados por ele à mão. O deselegante uniforme era, então, a matéria-prima da sua arte, obviamente não a única. Bispo precisou em vida de muitas outras linhas, já que seu legado, como vimos, iria se tornar imenso, um monumento egípcio, um câmara faraônica feita com fios (não apenas azuis) e agulha. Os fios também podiam ser desfiados de lençóis, ou comprados novos pelo artista, a fim de que ele dispusesse de material para concluir sua obra, ou pelo menos parte significativa dela, por exemplo, os objetos em madeira ou papelão mumificados.

Dentre os vários objetos revestidos de linhas azuis, que a pirâmide de Jacarepaguá abrigou, citam-se cetros destinados às misses, ou que as misses poderiam portar nas passarelas e palcos por ocasião dos concursos de beleza. Lutas e concursos aparecem com destaque na obra de Bispo; o pugilato, a luta a socos, por exemplo, através de um ringue em miniatura, os concursos de beleza por meio dos cetros já citados. No entanto, se homenageou o boxe e a beleza feminina nas passarelas, Bispo em momento algum de sua “carreira” quis ou pretendeu entrar na competição dos artistas que almejam conscientemente a imortalidade artificial que discutimos atrás. Mas, por outro lado, é inegável que ele, como todo artista bem-sucedido, entendia de lutas e concursos e os repensou e recriou em sua obra, que é, de certa maneira, a obra de um lutador profissional (na juventude, Bispo teria lutado boxe profissionalmente, assunto ainda controverso, porém é fato comprovado que possuía talento nessa área, pois soube sempre ministrar socos certeiros e tirar proveito deles no manicômio, ascendendo à posição de xerife, aquele que controla os companheiros e desfruta de regalias). O lutador profissional, em Bispo, nunca foi, porém, um lutador no ringue da arte moderna ou contemporânea. Bispo lutou, isto sim, com afinco e obstinação, por espaço físico no manicômio, e no final da final viu essa luta coroada, quando montou sua câmara faraônica. Sem isso sua arte não teria existido, tal como nós a conhecemos hoje.

Que fim levou Odradek?

Em vez de falar da técnica egípcia usada na mumificação dos corpos, essa grande arte, essa arte inigualável, vou me deter sem preâmbulos na imortalidade de Odradek, personagem kafkiano mencionado no início deste ensaio, personagem que aparece no conto “Die Sorge des Hausvaters”, “Preocupações de um pai de família”. Poderia Odradek, como me sugeriu uma foto que vi de relance, conforme já mencionei, ter-se transformado de repente, magicamente, em Objeto Recoberto por Fio Azul (O.R.F.A.), na pirâmide de Jacarepaguá?

Como é sobejamente conhecido, Odradek tem o aspecto de um carretel de linha, achatado e em forma de estrela, e dá a impressão de ser feito de pedaços de fio, pedaços velhos e coloridos, cortados e cheios de nós. A despeito disso, Odradek não é um carretel roto, algum maltratado O.R.F.A. que  necessitasse de restauração e se desmanchasse agora diante de nós, no museu do hospício, depois do falecimento de Bispo do Rosario. Dotado de hastes especiais, esse ser estrelado pode ficar em pé e se locomover como se tivesse duas pernas. Kafka afirma: “Seríamos tentados a crer que esta estrutura teve alguma vez uma forma adequada a uma função, e que agora apenas está quebrada. Entretanto, esse não parece ser o caso; não há pelo menos nenhum sinal disso; em parte alguma se vêem remendos ou rupturas; o conjunto parece sem sentido, porém completo à sua maneira. Nada mais podemos dizer, porque Odradek tem extraordinária mobilidade e não se deixa capturar.”

Odradek é visto no forro, no vão da escada, no saguão, e quando indagado: “Onde moras?”, responde fatalmente: “Domicílio incerto”, e se põe a rir, produzindo som semelhante ao sussurro de folhas secas. Nunca saberemos de onde Odradek vem; muitas vezes, Odradek é tão quieto quanto a madeira de que parece feito – não se obtêm dele respostas. Bispo do Rosario viveu situação equivalente. “Quando alguém perguntava sobre a sua origem”, afirma Hidalgo, “Bispo desviava: era um enviado dos céus, um Cristo, o próprio. E arriscava: — Um dia eu simplesmente apareci no mundo.”

Vimos atrás como alguns homens se tornam imortais, artificialmente; Odradek, esse inclassificável animal que fala, aparentemente integra essa classe seleta de seres perduráveis no tempo, sendo, parece-me, simultaneamente efêmero e eterno. Tal fato angustia o narrador de Kafka, que se indaga no último parágrafo do texto: “Inutilmente me pergunto o que acontecerá a ele. Pode morrer? Tudo que morre teve antes um objetivo, uma espécie de atividade, e assim se gastou; isto não acontece com Odradek. Descerá a escada arrastando fiapos frente aos pés de meus filhos e dos filhos de meus filhos? Não faz mal a ninguém, mas a idéia de que possa sobreviver-me é quase dolorosa para mim.”

No relato de Kafka, Odradek viaja, parte a qualquer momento, sabe-se lá para onde; assim também sucede com a câmara faraônica de Bispo, feita de fios azuis e de outras cores, fios que parecem também (às vezes) sujos, empoeirados, desfeitos, cheios de nós. Como observou Sloterdijk, ao comentar as teses de Groys, até mesmo a câmara da pirâmide é um objeto transportável, porém conhecemos seu destino: “Ela aporta de preferência nas regiões do mundo moderno onde as pessoas são obcecadas pela idéia de que os objetos artísticos e culturais devem ser conservados a qualquer preço.” E o filósofo conclui: “O espaço morto de estilo egípcio é, em conseqüência, reinstalado onde quer que existam museus, na medida em que os museus são apenas espaços heterotópicos no coração do ‘mundo da vida’ moderna, nos quais os objetos selecionados, quais múmias modernas, são mortificados, desfuncionalizados, retirados do uso profano e propostos à contemplação meditativa.”

Um aspecto de Odradek, no entanto, que precisa ser destacado: “(…) em parte alguma se vêem remendos ou rupturas; o conjunto parece sem sentido, porém completo à sua maneira”. A obra de Bispo, no detalhe, apresenta remendos e rupturas. A esse respeito, o depoimento de Patrícia Burrowes pode ser interessante, na medida em que enfatiza, em muitos pontos, o mau estado de conservação da obra de Bispo do Rosario e a fragilidade intrínseca a muitas peças. “Uma certa tendência ao desaparecimento: tudo é tão precário”, ela afirma, “a qualquer momento pode-se desfazer, retornar ao que era ou prosseguir para o lixo. Reassumir suas características banais: utilitário ou dejeto. Tanto que, após a morte de Arthur Bispo do Rosário (sic), houve pressão dos funcionários da Colônia Juliano Moreira para que todo aquele universo fosse desmembrado, selecionado, domesticado. Que os utensílios voltassem às suas funções anteriores, que se os reaproveitassem: as canecas no refeitório, os lençóis sobre as camas. E que o resto se tratasse mesmo como resto.”

Odradek, ao contrário, é completo e eterno na sua aparente incompletude (ele é a encarnação da jouissance, que não serve para nada, segundo Slavoj Zizek, citando Lacan, na medida em que vive além da finitude e do tempo e é sem finalidade e objetivo); a vasta obra de Bispo, composta de mais de 1 000 peças, começa a ruir em certas partes, exibindo toda a fragilidade da imortalidade artificial dos artistas e dos filósofos.

Quando penso na imagem atual de Bispo do Rosario, a de artista contemporâneo (uma imagem fabricada postumamente, a subjetividade é, conforme Borges, Groys e tantos outros, o espaço em que se manipulam as imagens), um dos maiores artistas, aliás, do Brasil, recordo-me imediatamente que as pirâmides são e serão sempre violadas. Por ladrões comuns e/ou representantes do império ocidental.