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O excêntrico Capitão Caldas

Fundador de Navegos evoca suas lembranças de um dos grandes poetas da língua portuguesa, nascido no mesmo ano de Fernando Pessoa, em Goianinha, no Rio Grande do Norte, e falecido no Açu em 1967.

*Franklin Jorge

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Menino ainda, morando com meus avós num velho e comprido casarão da Rua Moisés Soares 89, entre 1960-61, conheci o poeta João Lins Caldas, que se referia a si mesmo como o ‘’Capitão Caldas’’. Era amigo de meu avô, que lhe devotava grande apreço e consideração, por sua inteligência e saber propalados pelo Açu. Tinham-no como um excêntrico e grande poeta de quem alguns poucos sabiam de cor um ou outro poema, como Isabel [‘’Uma Isabel morreu no mundo./Tinha pai, mãe, irmãos. Um mundo de primos no mundo…’’]

Vestia um surrado paletó de algodão, acinzentado ou azul-celeste, permeado de algumas manchas e amarfanhado, pois o poeta o vestia sem engomá-lo ou passar-lhe o ferro. Usava um embornal à tiracolo e, algumas vezes, uma espingarda que usava para passarinhar e caçar pequenos animais para o seu consumo. Vivia de maneira frugal, desde que se aposentara do Ministério da Viação e Obras, ao denunciar ao ministro e escritor paraibano José Américo de Almeida, um expoente do Romance Nordestino de 1930 que revelou e incrustou nas letras brasileiras autores como Rachel de Queiroz e João Lins do Rêgo, Jorge Amado e Graciliano Ramos aos quais o tempo conferiu insuspeitada grandeza.

João Lins Caldas tinha ojeriza a José Américo de Almeida, ex-juiz que, na titularidade do Ministério de Viação e Obras o demitiu para não abrir procedimento investigativo relativo à denúncia de corrupção feita pelo poeta que não compactuava com improbidade e ilícitos. Almeida o aposentou de suas funções e deu o caso por encerrado, fato que indignara Caldas, segundo relatos de Antônio Gentil da Fonseca, que referia o fato à minha avó, com quem se casara em segundas núpcias em 1938.

Morava sozinho na antiga Rua das Flores, no Macapá, bairro próximo do Centro, que terminava nuns roçados cercados de arame. Em frente à Lagoinha, então já seca e atulhada de resíduos de construções e refugos, tomava água nas grandes invernadas. Morava numa casa de porta e janela, muito modesta, cheia de tralhas e ferros velhos que o poeta comprava com a intenção de revende-los para reciclagem, palavra ainda desconhecida naquele tempo.

De tradicional família patrícia, possuía alguma terra, lá para os lados da Fazenda São João, latifúndio de propriedade do Padroeiro do Açu, beneficiário em muitos testamentos e heranças deixadas opor seus paroquianos que lhe ergueram a imponente morada, uma das maiores, mais belas e imponentes igrejas matrizes do Rio Grande do Norte. Dera a essas terras o nome de Frutilândia, que seria sua Pasargada na terra inóspita e pouco hospitaleira que foi, para ele, uma representação do Inferno. Certa vez confessou a Dona Gena, amiga de tantos anos: ‘’O Açu é meu inferno”.

Notável caminhante, cobria a pé, todos os dias, uma vasta extensão de terra; ia do Açu à Picada, latifúndio do Major Montenegro, seu parente afim, em Ipanguaçu, do outro lado do rio Açu, em marcha forçada, às vezes detendo-se para apreciar a natureza, o voo dos carcarás ou tomar banho no rio corrente e imemorial. Num desses dias, aceitou carona na garupa de um cavalo. Ao descer da garupa do cavalo, na vazante do rio, percebeu que perdera o caderno adornado de poemas que trazia debaixo do braço. Segundo contou a Dona Gena, voltou aos prantos, até o ponto em que aceitara subir no cavalo, sem encontrar seu laborioso manuscrito. Dessa experiência sinistra extraiu os versos do seu magnífico soneto, Livro perdido. Vacinado contra a influencia das escolas literárias, não costumava falar sobre poesia senão com aquelas pessoas que considerava possuir uma alta cultura.

Sua amizade com Maria Eugênia daria um livro, se alguém se dispusesse a escrevê-lo. Visitava-a frequentemente e passava horas em sua companhia, relembrando sua vida passada, o amor por uma mulher a que chamou de Arina, sua convivência com os grandes escritores e poetas de seu tempo, no Rio de Janeiro e São Paulo, onde viveu sua mocidade. Gostava de dizer-lhe seus poemas, às vezes chorando o poeta condenado a uma vida obscura, como o fez ao ler Matolengo, que Dona Gena intuiu ser um duplo do autor, um ser mítico fatalizado pela poesia que se faz com palavras,

Matolengo

O autor de caçadas

De tiros em antas, em onças em

garças…

Lá vai Matolengo

O livro que leva

Das selvas, dos bosques

Das matas espessas

Lagoas nas bordas

Tem bichos nas bordas…

 

Tem amplas caçadas

Meu Deus, Matolengo…

Amigos que teve

Piratas de livros

Piratas de cousas

Que cousa…

 

Ouvi Matolengo

Seu gosto é desgosto

Seu modo é de fardo

Que fardo o seu corpo.

Eu sei do seu corpo

Que o bom Matolengo

Disperso nas águas

Disperso nas matas

É folha com o vento…

 

Lá vai Matolengo…

um verso nas folhas

Um verso nas rochas

Estrofes nas nuvens

Estrofes nas pedras

Seu canto não pára…

Dispara…

 

Um canto na treva

Um trilo

Sigilo…

É ele quem leva

O fardo espingarda…

 

Parado

Tranquilo

A face de pedra

Caminho de rochas

E tochas

Pesadas

As mãos desvairadas

Que abraçam nas rochas.

 

Ouvi Matolengo

Sombrio, cansado

Fardado de rochas

Fardado de pedras

Passando os extremos…

 

Matolengo…

Se roça nas pedras

Se roça as escarpas

Os astros que roça…

Quando nos visitava, conversava durante horas sobre política, seu assunto predileto, e a conjuntura nacional. Tinha horror ao ditador Getúlio Vargas, que admirara antes de se tornar um tirano. De sua boca ouvi, pela primeira vez, o misterioso nome de Nietzsche, Friedrich Nietzsche, que me chamou a atenção e despertou em mim uma grande curiosidade. Durante o almoço, quis saber de meu avô quem seria esse Nietzsche. E ele, laconicamente, respondeu: Um homem que intentou assassinar Deus. Não entendi o que ele queria dizer com isto, mas percebi intuitivamente que se tratava de alguém que eu precisava conhecer para além do nome.

Magro, quase somente ossos sob uma pele que parecia ressecada, sua figura despertava em mim, mas especialmente em minha irmã, um certo temor. Quando ele entrava em nossa casa, escondiamo-nos ou o espionávamos a alguma distancia, pois Dudé, que ajudava nos trabalhos domésticos da casa e tinha como ocupação principal cuidar de minha irmã e eu, para nos incutir medo e nos chantagear quando isto se ajustava aos seus interesses, pintara o poeta como como uma espécie de bicho papão. Apesar do medo, sentia uma grande necessidade de me aproximar de Seu Caldas, razão pela qual procurava ouvir cada uma de suas palavras.

Foto do Arquivo de Pedro Otavio Oliveira.