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O excêntrico Senhor do Castelo

Recentemente falecido, em Sítio Novo, nos cumes da Serra da Tapuia, Zé dos Montes ergueu o mais esplendoroso dos castelos que inventou ou construiu, no Rio Grande do Norte e nos estados de Pernambuco, Ceará e Piauí. O texto abaixo surgiu de uma conversa que tivemos, ele e eu, há mais cinco anos.

*Franklin Jorge

Desde a Casa de Arame, nas Quintas, construída há mais de 60 anos – monumento que precede em muitos anos a Ópera de Arame -, demanda aristotelicamente José Antônio Barreto ou Zé dos Montes, como se fez conhecido, em busca do bom e do belo. O castelo da Tapuia é a sua obra-prima e uma obra-prima da arquitetura no RN. Digna de figurar entre as singularidades arquitetônicas do nosso tempo.

Constrói nosso artista onde ordenam as Potestades que o instruem nos mistérios da existência. Seu visionarismo estético já ultrapassou nossas fronteiras geográficas, como o triunfo da vontade sobre os obstáculos. Sua obsessão é construir castelos, fortalezas e palácios, essa a missão que recebeu de seres intergalácticos que habitam o seu mundo imaginário e real que se enriquece com um misterioso alfabeto que parece repetir alguns caracteres egípcios ou cuneiformes.

Marinheiro, cruzou os mares. Por fim, renunciou ao mundo para fazer-se arquiteto em tempo integral e construtor de paisagens imaginárias. Aqui, nesse recanto empoeirado acima do nível do mar, de onde se contempla o horizonte e, aos nossos pés, o vale: a terra onde todos vivem do mínimo com fartura. Aqui entregou-se à construção de seu mais esplendoroso e magnífico castelo, envolto em uma magia benfazeja, dir-se-ia mágica, em terras de Sítio Novo.

Quero pensar que esse castelo tem 100 torres que alcançam o céu, me diz o homem numa fala mansa e demorada. Olhando em volta, impressiona-o as centenas de arrobas de cimento que investiu aqui. Tudo anotado, contado, medido, somado. Enquanto tem vivido, ergueu torres e sentinelas e anteviu, como alguém a quem foi outorgado o dom da profecia, outras dimensões.

Zé dos Montes está sentado à sombra de uma latada coberta de palhas de coqueiro. Recebe-nos com cordialidade, quando o procuramos. Às primeiras palavras, torna-se logo, de bom anfitrião a camarada que se empenha em contar-nos dos seus sonhos, oráculos e profecias, tudo inscrito em livros sagrados.

Discreto, de palavras pensadas, não se dá a conhecer de repente. Trata-se, pois, de um Vate, um poeta que antevê os fatos.  se mantém antenado com outras dimensões, viajante do tempo. Quando não está sonhando (pensando), escreve sem parar, em hieróglifos, caracteres que vai pacientemente traduzindo, palavra por palavra, vírgula por vírgula, para que eu não perca um detalhe de seus registros e embaixadas dos que chama de Mestres. Participantes de um colégio de sábios e altruístas. Seres que se guiam a um tempo pela bondade e beleza, que significam a mesma coisa.

Aqui chegamos como parte de uma Expedição Fotográfica, organizada por Sônia Furtado, Nina Batista e João Maria Alves, que me estimulou a escrever as impressões dessa incursão que me faz ganhar o dia, ensolaradíssimo, que começou com o perfume da terra molhada pelo orvalho noturno. O que faço agora, alguns anos depois, sem recorrer a notas, pois creio que as perdi em meio a tantas notas. Não é a primeira vez que João Maria o fotografa, ao velho Senhor do Castelo, que nos recebe desprevenidamente, com calor humano. Há de ter fotografado a Casa de Arame, no bairro das Quintas, em ensaio ou protótipo de uma quimera que guia os passos de Zé dos Montes, sob as lentes de João Maria, no curso do tempo. Quando vi a Casa de Arame, aí pelos anos de 1960, senti um alumbramento. Nem pedi que o carro parasse ou retrocedesse, atônito que fiquei diante daquela casa guarnecida por um sudário de arame laboriosamente rendado, brilhando ao sol da manhã. Pareceu-me um sonho, uma aparição, aquele invólucro tecido em arame em torno da casa, algo que a tornava, entre as demais, especial.

Zé dos Montes é um caboclo silencioso, mas não taciturno, e às vezes faz libações ao frescor, refestelado da garupa de uma motocicleta Alguma vez terá esvaziado, à direita e à esquerda, uma sacola de moedas, ao subir a serra na garupa. É um homem que observa tudo com olhos de águia; em derredor, a cem léguas, nada lhe escapa. O que vê e o que não vê. Mesmo em suas horas de elucubrações, perscruta, valia, prevê. Percepção muita. Veste-se como se veste todo mundo, de bermudas terra, camisa verde de mangas curtas. Alimenta-se de farinha, rapadura e mel. Do seu banquinho toma conta do mundo. Antevê o Apocalipse. Contempla as torres do castelo acima do nível do mar, sob o dossel de nuvens fugidias. Às vezes, sorri para fora, quando se sente um homem feliz. Não somos felizes o tempo todo, diz-me. Mas buscamos a paz e a felicidade, que se resumem em beleza. Sem beleza não há Justiça. Não há salvação. Não há paz!

Os castelos nascem da fantasia de Zé dos Montes, e do que ele vê e observa em seu visionarismo e viagens astrais e interplanetárias. Revelações que contêm um propósito, nada o desanima ou lhe altera o ânimo. Está sempre calmo e relaxado. Vive para o seu sonho e utopia, que o faz passear e se comunicar com seres de outras longínquas esferas. Deles aprendeu o alfabeto, que usa em seus testemunhos. Sem utopia, que é do homem? A sua, construir castelos, como portas do interior e moradas.

Deles, aprendeu o alfabeto, ressalta, e a língua que usa para escrever seus tratados esotéricos, teológicos, filosóficos, em letras e figuras ancestrais e icônicas. O senhor costuma olhar o céu, diz-me num rompante. Percebi que o céu lhe é familiar. Reverenciamos o céu, o senhor e eu, cada um a seu modo e a bel-prazer. Quase tenho de arrancar da boca de Zé dos Montes as palavras. Ele se compraz em longos silêncios e em mostrar-me os cadernos que contam mistérios sem fim.

Construído na chã da serra da Tapuia, de torres que saúdam o céu, numa paisagem que sugere a Grécia, com cabras pastando vale afora, entre relevos, pedregulhos e tufos de capim, o Castelo de Zé Montes recreia-nos os olhos empoeirados e as retinas fatigadas. Enche-nos a alma de ânimo e esperança ver a sua invenção sob o empíreo. Percorremos seus corredores que esbarram às vezes em becos sem saída, salões e pilastras, calabouços e celas minúsculas, terraços e ameias que desafiam o previsível. Sua branquidão coroada de telhados escarlates, resplendendo ao sol que avança seguindo a dança das horas. Num corredor exíguo deparamos uma cobra que fugiu espavorida por entre nossas pernas.

Zé dos Montes construiu a alguns metros do castelo, sobre uma grande pedra redonda, uma casa amável, inabitada, e oferecida a mim como um lugar de refúgio e trabalho, de onde eu poderia apreciar o céu, ler e escrever, em sossego, à sombra do castelo. Escalo a pedra com facilidade e percorro a casa dos sonhos, de onde se vê o horizonte. Não há portas, exceto a do banheiro. Há água para as necessidades de um homem. Fiquei um tanto tentado pelo convite. Seria bom passar uns dias aqui. Ler e escrever, e ter a companhia de Zé dos Montes. Mas pensei que esse luxo iria me estragar.

Há uma sintonia entre nós que sequer as lentes de João Maria, Nininha e Sônia logram distrair-nos. Conversamos como velhos amigos que se reencontram, no sertão seridoense, sob uma latada coberta de palmas de coqueiros e galhos de oiticica.  À sombra, um banco para, no máximo, bem espremidas, três pessoas. O velho enfatiza que não valoriza qualquer companhia. Prefere à quantidade a qualidade. Só o raro é disputado. Só o raro tem valor. Sozinho, pensando mil vezes sobre as mesmas coisas, mantém-se atilado. Como Cérbero, guardião do inferno, parece ter cem olhos e a visão poligonal das abelhas. Enxerga, como disse, longe. Talvez nos faltasse a música celeste de Urbano Medeiros, que havia pouco descobrira noutra viagem interior. Esse Vivaldi seridoense com algo de eremita, transplantado para Minas Gerais, faria um concerto magnífico, aqui, no castelo sagrado, no dorso da serra da Tapuia.

Desse encontro tenho o registro visual completo feito por João Maria Alves, experiente e sensível repórter-fotográfico, há mais de 50 anos fazendo história através de registros fotográficos de saborosa verve etnográfica. O Rio Grande do Norte está gravado em suas lentes. Quisemos torná-la pública, em mostra didática, pela Sala Natal, projeto sumariamente abortado pelo secretário de Cultura, que sequer se dignou a examiná-lo. Além da mostra e de oficinas e laboratórios de fotografia, em atividade de fato multicultural (o secretário usa o termo de maneira duvidosa), participativa, interativa; enfim um programa efetivamente cultural, didático, informativo, construindo o conhecimento e aguçando a leitura crítica do objeto estético. Atividades mais próximas da educação do que do entretenimento.

Planejava-se também a edição de um livro reunindo a produção desse dia prodigioso e o acervo fotográfico, exponencial, informativo, digno de consagração pública, produzido por esse renomado repórter-fotográfico com quem tive a honra de trabalhar em diversas circunstâncias jornalísticas. Algo com que pudéssemos construir uma história visual do Rio Grande do Norte, algo de grande apelo turístico que secretário de Cultura boçal, de olhos fixos no próprio umbigo, não percebeu, não valorizou, torceu-lhe o nariz. Assessoramo-nos do conhecimento e da experiência de consultores informais qualificados que deram o melhor de si por Natal.

Dois dos quais cito com satisfação: a sra. Wanda Mieko, representante da Comunidade Japonesa em Natal, o professor Antenor Laurentino Ramos e o origamista Eugênio Rangel, com quem contávamos para realizar oficinas de origami que seriam usados para compor uma grande árvore de natal com 1000 cegonhas, símbolo de bons augúrios para os japoneses. Trabalhamos juntos, nesse projeto, de Josivan Alves Pereira, Deborah Sousa e o autor destas linhas. Pensávamos colocar em prática, segundo a recomendação que recebi do prefeito, em sua boa-fé e em minha esperança: “Pense grande! Surpreenda-nos com a Sala Natal!”. Foi o que intentamos fazer, na Sala Natal, valorizando o mérito de João Maria Alves e oferecendo à cidade a usufruição de uma arquitetura onírica, chagalliana, digna de aplausos. Um endereço cultural, arquitetônico e turístico nos sertões seridoenses, a atrair olhares encantados. Esse castelo deve ser considerado patrimônio cultural.

Em destaque, o Castelo da Serra da Tapuia; acima, o Zé dos Montes, seu idealizador e construtor, fotografados por João Maria Alves para projetoi da Sala Natal que pretendia dar projeção nacional a obra estético-arquetônica que surpreende e encanta a todos. Uma genuína obra-prima do engenho humano.