*Franklin Jorge
Tivemos em comum certa preferência musical e de nos ter dado ao desfrute daquelas plangentes canções viscerais, napolitanas e, tour de force, as Chulas Marajoaras solfejadas, aqui e ali uma coda, que compusera Waldemar Henrique, um virtuose que encontrara na música ancestral a rítmica e melódica tessitura urdida em um grande acontecimento estético. Era o leitor musical dos mistérios e sortilégios da Amazônia, do ritmo, do bulício, do encachoeirar, descer de levada, do ciciar, do rumorejar das nascentes, dos sussurros da floresta do estalido dos galhos secos. ninguém com maior sensibilidade para apreender as vozes do silêncio.
Tem um espírito boêmio Maria Lúcia. Gosta de conversar. tem um espírito rebelde que contrasta com o rigor do canto lírico feito de disciplina. Me agrada mais uma conversa dessas. Um cafezinho. mais conversa jogada fora. Olha, quem diria, celebramos Waldemar Henrique, que supomos em sua bela Belém. Tenho prazer de deixar o pensamento devanear, deambular, ir e vir, numa longa circunavegação. Passeando pelas cidades mineiras, admirando aqui e ali um Aleijadinho, um Guignard, um Iberê, detendo-se nas velhas igrejas, nos casarões cheios de almas, nas pensões e pousadas, nos restaurantes e comedorias, etc.
Queria, como muitos querem ao velho maestro, um verdadeiro dândi, elegatíssimo, ao grande maestro – que não era mas seus colegas e admiradores o agraciaram com o título magnífico, esplendido, de maestro. Ninguém ousaria chama-lo de outro modo. sempre maestro fora por seu talento.
Atuar com ele era caminhar por outros remansos. A música amazônica o dominava, naquele tempo em que ensaiávamos exaustivamente as chulas marajoaras, as canções indígenas e dos canoeiros, as versões, as primeiras notações, notas, crônicas, o diário de um músico em tudo laborioso. Era um perfeccionista.
Tudo isto conversamos, na cozinha, em torno de um prato de feijão preto com arroz que ela mal beliscava. Prometia um tutu mineiro. Fazia vergonha não ter tutu em uma casa mineira. Prestes, mudar-se-ia para Belo Horizonte. Lá, teria uma editora que se importava com seus escritos infanto-juvenil.. Tinha de volta a sua terra mineira, tinha a paz, e o tutu a mineira. Com couves. O canto deu ensejo à literatura, mais especificamente à literatura infanto-juvenil. Já escreveu seu primeiro livro. Espera levar adiante escrever mais e mais.
Não cozinho com frequência, mas cozinho bem, se me proponho cozinhar alguma coisa, como o Tutu mineiro. Um dia, farei para vc. Prometo.
Deu-me um livro seu para um público infanto-juvenil.
Morava modestamente, sem luxo, sem nada que lembrasse uma diva. Havia algumas fotos pelas paredes. Sozinha, tenho muito no que me ocupar. também gosto de estar sozinha. Nunca é possível estar sozinho inteiramente sempre estamos acompanhados de pensamentos.
Waldemar está impregnado da Amazônia. Lembra-me um druída, tivesse a barba longa e branca. Carrega sobre os ombros uma sabedoria quase infinita. Sua música é uma síntese de sínteses. Algo sofisticadíssimo, não acha?
Maria Lúcia solfeja uma melancólica canção napolitana, tristíssima, que ouvira tatas vezes e ela não sabia. Nem neste momento. Calei-me. Disse-lhe quanto essa canção me entristecia e seria a predileta de minha avó, que a encantava em sua bela voz de contralto.
Pensei em Isaac Karabichevski, mas achei bom não dizer nada. Preferi fazê-la falar sobre as canções napolitanas, tão vivas, tão longínquas e remotas, que falava à alma. Gosto da Bossa Nova.
Não há segredos para cantar essas chulas. Waldemar quis que todos cantassem. Como cantaram os indígenas antes dele. São canções de um mestre sobre composto popular. Concordamos que será uma Vilas-Lobo e Cobra Norato. Ficamos pensando, se um dia, Waldemar compusesse uma ópera. Cobra Norato. Um dia – despedia-se – comeremos o nosso tutu mineiro. Naqueles anos de 1970.
Agora, aos 93 anos, naquele arranjo de Waldemar Henrique, há de ter alguma dieta
