*Astrid Cabral – Escritora, membro do PEN Club do Brasil e tradutora de O lago de Walden, pertenceu ao Corpo Diplomático do Brasil.
A epígrafe com que Franklin Jorge abre este seu novo livro – Sei que gostais de retratos, e lamento por essa razão não vos ter podido fazer ver até aqui quase nenhum que não seja de perfil e que não seja, portanto, demasiado imperfeito (João Francisco de Gondi, Cardeal de Retz) – traz-me à lembrança a lenda do rei caolho que desejava o seu retrato perfeito, com isso instalando o rebuliço entre os pintores do reino. Alguns delinearam o rei de olho vazado, por terem a perfeição como cópia fiel da realidade. Já outros, para os quais a perfeição era o ideal, desenharam-no restaurando-lhe o olho. O rei rejeitou o retrato até o dia em que um artista iluminado lembrou-se de que o rei era exímio caçador e neutralizando o dramático dilema, pintou-o de perfil, assestando o alvo contra a caça.
Para Gondi o perfil é imperfeito na acepção de incompleto. No entanto incompleto seria também o retrato de frente por não incorporar a terceira dimensão. Neste sentido, incompleta é toda a arte já que não abarca nem esgota a vida em sua plenitude, mas resulta sempre do ângulo pessoal ou perspectiva do criador. Só o artista verdadeiro consegue num lance de intuição divina resolver o impasse dessa fronteira, sendo capaz de too see a Wold in grain of sand, como no verso magistral de William Blake.
Neste Retratos Pessoais Franklin Jorge nos dá perfis como aquele que agradou ao rei: perfeitos por atenderem à realidade aparente e oculta, ao verdadeiro e ao sonhado. Em pinceladas concisas surgem diante de nós os traços essenciais das figuras.
A primeira impressão que me causa o livro é a de me encontrar no espaço de uma galeria de textos que iconograficamente reproduzem retratos no tradicional formato quadrado ou retangular. Só que os retratos em vez de se fazerem a partir de elementos pictóricos como linhas, cores, texturas, fazem-se ineditamente a partir do verbo. Tem-se portanto o impacto gerado pelo imprevisto diante do novo veículo de expressão, o inesperado suporte, já que, por outro lado, os retratos ou perfis que conheço na literatura não cogitaram de um isoformismo gráfico e se restringiram ao campo verbal.
Examinando o livro de modo mais detido e minucioso, noto que todos os retratos se articulam dentro de uma proposta, como na exposição em que o artista apresenta os trabalhos de determinada fase, o denominador comum da presença de elementos recorrentes promovendo a unidade. Aqui, ela decorre tanto do fato de todos os retratos serem perfis de criadores – pintores, escultores e escritores – como do substrato místico e mítico que perpassa ao longo da galeria.
As pessoas que interessam a Franklin Jorge são aquelas criaturas que por recriarem o mundo iluminam-se da centelha divina, pois na sua concepção o artista é “cúmplice de Deus”. Vejo portanto um processo intensivo de mitificação do artista, colocando-o num plano maravilhoso, muito além do humano. Assim Deus concede pessoalmente a Bressane o privilégio de extrair a alegria do caos, Lúcifer se encarna em Rones Dumke, Meyer Filho doma dragões. E Franklin Jorge refaz o Gênesis de acordo com sua fantasia, usando os dados bíblicos com a maior liberdade. Se da costela de Adão originou-se Eva, é da perna de Antonio Poteiro que Deus vai retirar o barro para moldar Adão.(Quem conhece a estranha força cósmica e mítica que irradia da obra do ceramista goiano pode entender esse perfil onírico e verdadeiro).Xerazade domestica o Sonho, tornando-o matéria de rotina; Curitiba é o paraíso terrestre na visão de Jayme Lerner; e se num gesto de curandeiro Bonfanti extrai o cancro oculto, Diniz obra o milagre de fechar as feridas.
Em todos esses perfis dá-se aquele mesmo processo de “absorção da realidade pela arte” que Franklin Jorge assinala ter ocorrido com Konstantinos Kafafys. Tal e qual Lawrence Durrell no Quarteto de Alexandria, o autor de Retratos Pessoais transforma o real em ficção, pessoas de carne e osso em personagens lendárias. Admirável a eficácia do seu estilo despojado, extremamente substantivo. Cada poema ou prosoema é inconsútil, flui de modo total, quase instantâneo na medida em que o permite a linguagem da palavra. Note-se também o tom de atemporalidade em sutil coerência com o projeto plástico/literário que orienta o livro.
Sabemos que o retrato é um parêntese no tempo, um hiato em seu fluxo. Por isso mesmo a dimensão atemporal aí não prevalece, a não ser diluída na eternidade (“As pedras não conheciam a solidão das pedras até que…”) ou se tem a anulação das convenções cronológicas habituais (“As crianças nascem enrugadas do ventre de suas mães perplexas”).
Só mesmo alguém que alia o ofício de criador literário ao de crítico de arte poderia nos dar um livro de tal natureza rara: poemas em prosa que são meditações sobre a gênese da arte, o fenômeno da criação sob suas formas plástica e literária. Assim como Suely Bedushi, artista retratada por ele, “consegue, de súbito, aprisionar/a vida numa lâmina”, Franklin Jorge consegue aprisioná-la numa página.
*Prefácio do livro Retratos Pessoais [inédito].