*Alexsandro Alves
Se olharmos bem para o quadro, notaremos que ele é mal enquadrado. Os braços ultrapassam os limites da tela, seu corpo é torto, uma pincelada escura abaixo do ombro esquerdo indica que ele está sentado, a parte superior para a esquerda, a inferior para a direita, seu olhar é tortuoso, até sua gravata é torta e seu paletó parece amassado. O sentimento geral é de alguém sujo e desajeitado.
Foram detalhes como esses que provocaram escândalo em 1917, época da exposição de Anita Malfatti, em São Paulo. Seu mais virulento crítico, Monteiro Lobato.
Há escândalos e escândalos.
Escândalos falsos, dos tipos planejados como os de Oswald de Andrade, que pagou para lhe vaiarem em 22.
Mas há escândalos verdadeiros. Esses ocorrem quando artistas de verdade se impõem e se opõem.
É o caso da grande polêmica entre Malfatti e Lobato, motivada exatamente por esse quadro.
No centro da questão, conservadorismo e modernidade, o jogo preferido da estética.
Malfatti havia chegado dos Estados Unidos em 1916, e, sob o incentivo de Di Cavalcanti resolve expor suas obras. A exposição foi bem-sucedida com vários quadros adquiridos pelos visitantes. Mas a crítica de Lobato fez os compradores devolverem as obras.
Que força tem a crítica em uma cidade quando a arte é pensada e executada com verdadeira propriedade e sentido do que se faz e do que se quer alcançar!
Voltando ao quadro.
A cor predominante, amarelo, aliada à composição tortuosa da obra, ressalta a tensão do personagem. Se em van Gogh o amarelo indica a força de um dia ensolarado, de girassóis e grandes paisagens diurnas vibrantes, em Malfatti, nessa obra, o amarelo confere ao quadro um fechamento, uma opressão, que a escolha por pinceladas espessas ajuda a sustentar.
O aspecto psicológico que uma composição assim, tortuosa, evidência, é de grande tensão e ansiedade. Tais sentimentos não eram de interesse para apreciadores da arte. Nunca foram. Podemos afirmar que o personagem do quadro sofre de mazelas emocionais e também sociais – sua roupa amassada e, inclusive, as manchas em sua camisa branca, revelam de que classe social ele advém. E isso também contribuiu, em termos sociais, para a crítica da época. Não se reconheceram. E isso sempre é um problema para apreciadores de arte, sempre desejam se reconhecer nas obras, sempre desejam ver seu mundo nelas, e não a alteridade.
Mas nem sempre o amarelo de Malfatti está colocado em um contexto assim: A Estudante Russa (1915), A Boba (1915-1916), Tropical (1917) ressaltam o amarelo em momentos e emoções bem diversas. Porém, o aspecto social permanece em muitas outras obras, como em Tropical, que se filia ao desejo dos modernistas por procurar e definir uma alma nacional, uma identidade brasileira.
O choque que Malfatti causou em São Paulo, em 1917, foi um choque dramático, verdadeiro. Um choque tanto estético quanto social. Porque O Homem Amarelo, particularmente, dialoga com os novos rumos estéticos de maneira consciente, pensada, Malfatti racionaliza sua criação, orientando-a para a reflexão, mesmo que seja uma reflexão bombástica quanto a de Lobato. Não são os fogos de artifício da poesia carnavalesca de Oswald, que se encerra no ato em si. O fogo dele transforma em cinza seu ato artístico; o de Malfatti, o vivifica ainda mais.
Se Malfatti tivesse sido a líder dos modernistas, a coisa seria diferente.
A arte moderna no Brasil nasceu em 1917.