Antonio Stélio Araújo Castro
Tudo que sobe, desce.
Essa é uma lei universal consciente e que, dela, se tem conhecimento desde os tempos das escolas de mistérios do antigo Egito, onde hierofantes ensinavam a neófitos a alquimia do viver em prosperidade, com base no equilíbrio estabilizador das coisas, das cidades e dos seres humanos. E do Universo, claro. É tudo uma questão de seguir o fluxo, a vibração e a harmonia. O princípio valia ontem e vale hoje. E tem validade eterna.
Afinal, tudo tem o seu ritmo.
Como as marés e os pêndulos.
O hotel dos Reis Magos, na Praia dos Artistas – um pedacinho da minha inigualável Praia do Meio -, fez história quando deveria fazê-la. As décadas de sessenta, setenta e oitenta, sem dúvida, marcaram toda uma geração e deu à capital potiguar uma estrutura de leitos de hospedagem de padrão internacional, praticamente inaugurando o turismo na cidade. E com sofisticação.
Quem viveu, pode afirmar.
O empreendimento foi construído por iniciativa de Aluízio Alves, que contou com recursos da Aliança para o Progresso, um programa criado por John Kennedy com o intuito de barrar o avanço socialista na América Latina. Muitas escolas e hospitais foram construídos com esses recursos. O hotel também recebeu dinheiro do BID e da Sudene. Creio ter sido válida, significativa e ousada esta ação, em um momento que a cidade necessitava fomentar o turismo. E fomentou.
Com galhardia, registre-se.
A inauguração ocorreu em 7 de setembro de 1965 (data apropriada para os militares de plantão), ao som da gloriosa Orquestra de Frevos, do Recife. A pompa, claro, tinha a sua razão de ser. E logo aquele pedacinho de areia em frente ao hotel foi rebatizado de Praia dos Artistas, com frequência massiva dos natalenses durante o dia e noite. Sem falar nas madrugadas.
Que nada falam.
Apesar dos burburinhos.
Os bares proliferavam nas imediações, entre tantos, a memorável Casa da Música e o velho Chambaril. Não são poucos os que guardam fotos em preto e branco, como recordação de uma “belle époque” potiguar, onde pelo menos duas gerações viveram suas juventudes, seus amores e suas aventuras, alguns com rebeldia, outros com os sonhos à flor da pele, segundo suas possibilidades. E seguiram o fluxo antes do declínio.
Quando a maré baixa, se nada em poças.
Em meados da década de noventa, o glamour transmutou-se em perfume de gardênia, que se esvai com o suor do corpo e o calor da noite, como ocorria na boate Royal Salute, no hotel dos Reis Magos. E tudo culminou com um completo descuido e abandono, que transformou o sofisticado alojamento em uma apropriada locação para um filme de terror. Teve o seu auge, mas caiu pelo esgotamento. Como uma pirâmide do velho Egito.
Ou o um coliseu do Império Romano.
E a pompa deixou de pompear…
Uma caixa d’água suja, galinhas, cachorros, uma família entre bosta de animais e ruínas, um esqueleto de edifício caindo aos pedaços, lixo por dentro e por fora, lodos que pintam as paredes, morcego, corujas e odores pútridos formam o cenário de casa dos horrores e maltrata um prédio que já foi um dos mais imponentes da cidade. Depois do fluxo, no entanto, o refluxo pode deixar a coisa ainda pior. Para tanto, existe uma fórmula.
Aliás, em andamento.
É esta: juntaram-se empresários, funcionários públicos, promotores e procuradores, arquitetos, engenheiros, juízes, ambientalistas, políticos, historiadores, advogados e outros mais, para debater a situação daquilo que acham ser a de um corpo moribundo, em um morre-não-morre na UTI da praia.
Pura ilusão.
É irônico, pois, na verdade, o que conseguem com isso é apenas participar do velório mais longo da história do Rio Grande do Norte: o Hotel Internacional dos Reis Magos está morto há um quarto de século. Um defunto putrefato. Insepulto. Uma cicatriz nefasta no rosto da Praia do Meio.
E ainda pisam em seu cadáver.
Enterrem-no, por compaixão.
ADENDO – Acho que os tempos gloriosos do Hotel dos Reis Magos estão ilustrados em várias histórias vividas por dezenas de personagens potiguares. Contudo, reservo o direito de escolher – por mero gosto pessoal – uma contada por Nei Leandro de Castro, que transcrevo a seguir:
Newton era um mão aberta, esbagaçado mesmo. Na mesa dele ninguém pagava a conta. Quando acontecia de vender uns quadros, botar um bom dinheiro no bolso, a farra dos amigos estava garantida por muitos dias. Os poetas mais jovens (todos lisos, coitados), eram seus convidados de honra. Ele dizia à mãe, rigorosa e vigilante, que ia passar uma semana em Recife, hospedava-se Hotel Reis Magos e haja farra. Só voltava para casa quando a esbórnia levava o seu último centavo. Foi nesse hotel, na época o mais luxuoso da cidade, que Newton Navarro realizou uma de suas maiores proezas.
Era nos anos sombrios da ditadura, tempo difícil para uns e de boa vida para os militares, bajulados por políticos e pela classe empresarial. Ali, lojistas natalenses resolveram homenagear um general de passagem pela cidade. No meio da solenidade, Newton, melado que só a gota, aproximou-se do microfone e pediu a palavra. Um baba-ovo quis impedi-lo, mas o militar, com um gesto de cabeça, autorizou a fala. Newton, excelente orador até quando estava de porre, fez um breve discurso mais ou menos assim: “General, todos nós temos estrelas. As minhas estrelas, eu não carrego no ombro, e sim na minha alma de poeta. As minhas estrelas, nas noites de verão, repousam nas redes dos pescadores da Redinha e partem para o infinito quando ouvem os passos da madrugada. As minhas estrelas não são feitas de latão ou cobre. Elas têm o brilho do ouro do pôr-do-sol que banha o Potengi. E as suas estrelas, general, só brilham porque esfregadas com Kaol”. (Para os mais jovens: Kaol, na época, era um conhecido produto de limpeza.) Houve um murmúrio, o puxa-saco veio lá de trás, segurou o poeta pelo braço. Mas o general era gente boa. Levantou-se, foi ao encontro de Newton, deu-lhe um abraço e perguntou: “O que posso fazer por você, poeta?” Newton disse que queria ir para casa, no carro militar, com batedores na frente, de sirenes ligadas. E assim foi feito.
Antonio Stélio Araújo Castro, jornalista e escritor