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O inferno são os outros

O inferno seria mesmo os outros? A dialética que há na famosa afirmação de Sartre deixa entrever uma angústia e uma dicotomia entre o eu e o mundo.

*Oliver Harden

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A sentença de Sartre, tão lapidar quanto contundente, ressoa como um martelo nietzschiano contra as ilusões do eu e das relações humanas. À primeira leitura, sugere um pessimismo quase visceral: estar condenado à presença do outro é estar subjugado ao olhar que nos aprisiona, que nos define, que nos reduz a um reflexo da alteridade. Contudo, ao invés de uma mera queixa misantrópica, há nesse aforismo um convite à mais radical das introspecções: quem sou eu fora do olhar alheio? Existe um eu para além da alteridade?

A angústia sartreana repousa na constatação de que a consciência individual é ao mesmo tempo soberana e vulnerável. No momento em que o outro me vê, sou capturado por uma objetividade que escapa ao meu domínio. Torno-me personagem de uma narrativa na qual não sou o único autor, e essa dialética é angustiante, pois a liberdade que reivindico para mim é a mesma que confiro ao outro — e este, por sua vez, pode instrumentalizar-me, julgar-me, definir-me sem que eu possa escapar.

Aqui, ressurge a sombra do cogito cartesiano, mas desta vez deformada pelo existencialismo: penso, logo sou… mas sou também aquilo que o outro pensa que sou. A identidade, que gostaríamos de crer intransponível, moldada apenas pelo ímpeto da vontade, revela-se uma tessitura frágil, um jogo de espelhos onde o reflexo nem sempre nos pertence. No instante em que minha existência se desenha no horizonte do outro, sou despido da minha inviolabilidade. Não sou apenas um ser que se constrói, sou também um ser que é construído pelo olhar externo.

No entanto, seria essa condenação uma fatalidade sem saída? Ou há, dentro desse inferno de olhares, uma possibilidade de transcendência? Se tomarmos o pensamento de Sartre com o devido rigor, perceberemos que a prisão existencial da alteridade não se desfaz pela fuga, mas pela aceitação da própria vulnerabilidade. Se minha liberdade é simultaneamente um peso e um direito, a liberdade do outro deve ser aceita com igual gravidade. A angústia, então, não precisa ser um abismo, mas pode tornar-se um campo de reinvenção.

Talvez o verdadeiro inferno não esteja nos outros em si, mas na recusa de encarar a radical contingência do ser. O que nos fere não é o olhar do outro, mas a nossa impotência diante do fato de que nunca poderemos possuir integralmente a narrativa sobre quem somos. Isso, contudo, não deveria ser motivo de desespero, mas sim de libertação. No exato momento em que compreendo que sou um processo, não uma essência fixa, posso finalmente me apropriar do jogo existencial e criar a mim mesmo sem as amarras ilusórias da completude.

Assim, se há um inferno nos outros, há também uma possibilidade de céu: a consciência de que somos, inexoravelmente, fragmentos refletidos na vastidão da experiência humana. O que nos cabe, então, não é lutar contra a alteridade, mas aprender a dançar com ela, sem que nos percamos — e, sobretudo, sem que tentemos possuir o impossível: um eu absoluto, autônomo, inalcançável.