*Javier Cercas
Também disse, sem medo de cair no clichê, que o romance moderno começa em Dom Quixote; Como todos os clichês, este tem sua parte de verdade, que é grande e já expliquei, e sua parte de mentira, que é pequena e vou explicar. A rigor, o romance moderno não nasce com Dom Quixote, mas com um livrinho delicioso, extremamente inteligente e hilário, publicado cinquenta anos antes de Dom Quixote e pouco conhecido fora da tradição espanhola: Lazarillo de Tormes. O romance, que conta a história de um menino humilde que acaba como pregoeiro em Toledo, não é de um autor anônimo, como se costuma dizer, mas sim apócrifo: o mesmo protagonista do livro. Com efeito, “o Lazarillo-escreve Francisco Rico, que é quem nos ensinou a lê-lo- foi publicado como se fosse realmente a carta de um pregoeiro de Toledo (na época estava na moda imprimir correspondência privada) e sem nenhum dos signos que no Renascimento caracterizavam os produtos literários”; ou seja, não era “uma história que se pudesse reconhecer imediatamente como fictícia, mas uma falsificação, a simulação enganosa de um texto real, da verdadeira letra de um Lázaro de Tormes de carne e osso”. Desta simulação sustentada da realidade nasce o romance realista, o romance moderno. É verdade que, sobretudo no final do livro, o narrador dá pistas suficientes ao leitor atento para que ele adivinhe que não se trata de uma história verdadeira, mas de ficção, e em todo caso não muda o essencial: o Lazarillo é uma fraude, exatamente como “A Abordagem de Almotásim” ou, talvez em menor grau, “Pierre Menard, autor de Dom Quixote”.
É claro que existem diferenças entre as duas fraudes: Lazarillo finge que uma história fictícia é uma história verdadeira; as duas histórias de Borges, por outro lado, pretendem que dois textos ficcionais são dois textos reais. Eu me pergunto se não pode haver, no início da modernidade e pós-modernidade narrativas, uma indicação de uma diferença relevante entre as duas: como o Lazarillo, a modernidade se preocupa principalmente com a realidade, enquanto a pós-modernidade, como as duas histórias seminais de Borges, se preocupa principalmente com os textos; mais precisamente: trata da realidade por meio de textos; mais precisamente ainda: trata da realidade através da representação da realidade. O que mais uma vez confirmaria, aliás, que Dom Quixote contém in nuce todas as possibilidades do gênero: não é em vão que a primeira parte do romance trata sobretudo da relação de Dom Quixote e Sancho com a realidade, enquanto a segunda parte trata principalmente com a relação de Dom Quixote e Sancho com os textos que os representam: a primeira parte de Dom Quixote e a falsa continuação de Dom Quixote publicado por Alonso Fernández de Avellaneda. A primeira parte de Dom Quixote é moderna; o segundo pós-moderno.
Javier Cercas
A terceira verdade
***
Por que nos preocupamos que o mapa esteja incluído no mapa e as mil e uma noites no livro As Mil e Uma Noites? Por que nos incomoda que Dom Quixote seja leitor de Dom Quixote e Hamlet seja espectador de Hamlet? Acho que encontrei a causa: tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser ficcionais. Em 1833, Carlyle observou que a história universal é um livro sagrado infinito que todos os homens escrevem, lêem e tentam entender, e no qual também escrevem.
Jorge Luis Borges
Magias Parciais de Dom Quixote
Foto: Jorge Luis Borges na cerimônia do Prêmio Cervantes 1979