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O inventor de Cabo Verde

Escritor, engenheiro e diplomata, Luis Romano produziu uma obra que contribuiu decisivamente para a emancipação política de Cabo Verde, por séculos uma possessão portuguesa e finalmente um país, que em reconhecimento fez dele seu Embaixador em Londres. Autor de uma obra clássica, Famintos, viveu em Natal a partir de 1962 onde faleceu em 2010, aos 88 anos. Perseguido pelo salazarismo, salvou o seu livro colando suas páginas em seu próprio corpo e contrabandeando-as para o Brasil, que o acolheu desde 1962. Aqui é revivido pelo Fundador de Navegos, seu admirador e amigo, frequentador de sua casa à Avenida Afonso Pena

*Franklin Jorge

Vacinado contra as fanfarras publicitárias, Luis Romano encontrou em Natal um refúgio, por muitos anos pacífico e bucólico, para a elaboração de uma obra que lhe requeria tempo e fé.

Engenheiro de profissão, especializado na extração e beneficiamento do sal e do petróleo, jamais negligenciou o seu trabalho de criação, destacando-se como ficcionista, poeta e ensaísta inspirado na cultura, na tradição e nos costumes de sua terra natal, o arquipélago de Cabo Verde, que passa a existir literariamente através do seu talento e de uma vontade que jamais se rendeu aos obstáculos que geralmente se interpõem entre o homem e o sonho, para dificultar a obra e fazê-lo desistir. Romano, porém, venceu inclusive a doença e os achaques da velhice e, hoje, vivendo em Petrópolis, à avenida Afonso Pena, tem no trabalho de criação e reflexão o pão com que alimenta cotidianamente o seu espírito fortalecido pelo ideal.

Desde jovem, em seu nomadismo que o levou, sobretudo por motivação profissional a diversos países da África, da Europa e da América do Sul, escolheu o caminho das realizações e não o do prazer e da dispersão. Assim, nesse comércio obsessivo e paciente com idéias e palavras, construiu lentamente ao longo de mais de sessenta anos a extraordinária representação de algo fora do tempo, ou seja, a grandeza contida num vasto e significativo painel cultural que justifica sua própria existência.

Li-o pela primeira vez no Açu, creio que em 1966, quando ao vasculhar as preciosidades da biblioteca particular da escritora Maria Eugênia Maceira Montenegro, sua amiga e admiradora, descobri um exemplar de “Famintos” com um autógrafo do autor. Notei que o prefácio fora escrito por um irmão de minha avó, o que aumentou o meu interesse por uma obra que me descortinava a literatura de uma terra distante que se resumira até então para mim pelo esplendor selvagem de suas praias e por ter sido, no alvorecer do Brasil, um entreposto do comércio de escravos para o Novo Mundo.

Creio que teria de catorze para quinze anos naquela ocasião. Ambientado em sua terra, “Famintos” impressiona por seu contundente realismo, ao radiografar a seca e o séqüito de miséria que acompanha o destempero climático. Guardei desde então o nome do autor, sem suspeitar que, por astúcia do destino, um dia nos tornaríamos amigos.

Prisioneiro do demônio da pesquisa, Luis Romano tomou para si, com uma precisão que nada deixa ao acaso, a árdua e apaixonante tarefa de dotar o seu país de uma literatura e de um idioma literários próprios. É, neste sentido, um escritor adâmico, aquele que nomeia pela primeira vez tudo o que existe de singular e relevante em Cabo Verde, no âmbito das letras, da sociologia, da etnografia, do folclore e da antropologia cultural.

Dotado do espírito de águia de um ancião, nada escapa ao seu instinto literário. Porém, a mais grandiosa invenção do seu poderoso intelecto é o Cabo Verde, a maior de suas obras, sua pátria e sua língua. Salvo seja.