*Bruno Gaudêncio
O personagem Rubempré é um jovem provinciano que vai tentar a sorte na metrópole munido de seu talento poético e de todas as ilusões possíveis (assim como o próprio Balzac com seus vinte anos) que serão desmontadas pouco a pouco em Paris. O mundo das letras lhe mostra o quão insignificante é seu intento. Na voz de outro personagem, Daniel Du Arthez – primeiro amigo que Rubempré conquista no meio intelectual parisiense: “… sua história é a minha e a mesma de mil a mil e duzentos jovens que todos os anos chegam da província a Paris”.
Em paralelo a esta desilusão, há também a do amor que foi a principal causa de sua vinda para a capital. Enquanto estavam na província, Lucien du Rubempré e a Sra. Du Bargeton se envolveram nos saraus que aconteciam na casa desta. Apaixonaram-se, mas sequer chegaram a alguma proximidade que não fosse lícita. O caso dos dois acaba por se consumar apenas em boato. A Sra du Bargeton resolve se afastar do marido de vez, levando para Paris Rubempré como seu protegido e amante. Lá chegando, o provincianismo de ambos acaba por diluir subitamente a paixão frente aos valores da sociedade parisiense. A primeira ilusão de Lucien du Rubempré já está perdida, e os dois acabam por terminar com o caso que sequer iniciaram. Desabonado de sua protetora, com a qual contava para se manter, além das economias que sua mãe e seu cunhado, David Séchard o haviam dado, Rubempré tenta vender seus dons da escrita a algum livreiro. Mais uma tentativa frustrada. O jornalismo surge então como a alternativa redentora. Rubempré aprende todas as técnicas e expedientes da profissão. Neste ponto do livro, Balzac faz uma listagem dos métodos que os jornalistas empregavam para sustentar toda uma rede de tráfego de influências e troca de favores com editores, casas de espetáculos, políticos, etc., algo muito citado ao longo do texto.
Balzac empreende um ataque caudaloso por todos os flancos que pode a imprensa. Se há um mal no mundo, este é a imprensa. De espírito conservador, o escritor francês defendia a monarquia e chegou a apregoar o controle prévio sobre os jornais , no entanto, apesar da sua ira contra a imprensa, Balzac conseguiu articular questões cruciais sobre as quais o jornalismo se constituiu durante as grandes transformações engendradas pela Revolução Industrial. Como Wisnik (1994) “E como Balzac abrangeu, com a vontade de potência de sua visão inaugural, nada menos que todo o arco histórico do problema, pode-se dizer também que a sua questão é a do destino problemático da cultura diante da indústria da cultura.”
Para o escritor francês, o jornalismo seria uma degeneração da literatura, os jornalistas, “comerciantes de frases”. Isto reforça a tese do historiador da arte Mário de Micheli que segundo por volta de 1848 vai existir uma série crise das unidades do pensamento e o dissídio das classes torna-se aguda. Esta ruptura vai envolver os problemas da cultura e da arte , ou seja, vai haver uma espécie de a quebra da unidade espiritual do século XIX. Neste sentido, como propõe este historiador, quando os intelectuais deixaram as linhas de frente dos movimentos populares, criando assim uma poética da evasão. Balzac se inscreve dentro desta perspectiva pela assimilação do mito do bom selvagem, do culto a uma virtude perdida e que deve ser recuperada. Para ele a província, portanto onde se tem uma situação marcadamente anacrônica em relação ao cosmopolitismo e à industrialização de Paris, é o espaço depositário dos “verdadeiros” e “bons” valores. A república seria a corrupção instituída.
Daí a imprensa ser um mal. A nova sociedade desencadeada pelas transformações da Revolução Industrial se impunha aos que queriam conservar um mundo já extinguido, forçando a “perda total das ilusões”. Às ideias totalizantes da literatura de então, o jornalismo vai se opor em sucessivas fragmentações. Balzac quer levar a cabo uma luta entre “duas máquinas de representar o mundo”: o jornal e o livro. A pureza está toda com o segundo
De acordo com Wisnik representação literária e a representação jornalística disputam o que ele chamada de mimise da vida moderna. Para Balzac a imprensa é o mundo da mentira, e avança na verdade da literatura. Sendo assim: “A imprensa será o domínio do jogo das representações desconectado do horizonte da verdade, ou da manipulação dos verossímeis sem o lastro de sentido que os fundamentaria. Por sua vez, a literatura na qual o romancista se empenha, ao construir a comédia humana, aspira a uma representação totalizante do mundo que ao mesmo tempo experimenta a sua potência e perde terreno, como indica, entre outras coisas, o panorama entrópico dos meios de massa.”
Este empate sobre a maior representabilidade na produção de verdades está inserido no conflito da identidade entre o escritor e o jornalista na contemporaneidade. Na obra Pena de Aluguel, Cristiane Costa (2005) faz um panorama dos escritores jornalistas no Brasil entre os anos de 1904 e 2004. A autora destaca de uma forma interessante a relação entre a fluição literária e a necessidade de um literato está ligada a pratica jornalística para se manter e divulgar sua arte. Aliás, o próprio nome do livro alude a este dilema dos literatos: ter de colocar o talento, o bem escrever, a serviço da informação para obter reconhecimento. Fator este que de certa forma, favoreceu o reconhecimento da tanta da literatura como o próprio jornalismo. Tal convicção está expressa em frase de Olavo Bilac no livro: “Antes de nós, Alencar, Machado, e todos que traziam a literatura para o jornalismo eram apenas tolerados: o comércio e a política tinham a consideração e virtude.”
A mesma questão é enfatizada por Franklin Jorge (2002) em seu ensaio Os escritores e o jornalismo. Segundo ele há uma lista enorme de escritores que possuíram ou possuem uma espécie de ojeriza a prática jornalística, muitos deles foram também jornalistas. O autor cita, por exemplo, Jorge Luís Borges, Oscar Wilde e Margarite Youcenar, entre os maiores inimigos da imprensa quando se é escritor. Isso acontece devido ao que chamo de choque entre os campos literário e jornalismo. Neste choque os escritores jornalistas, como foi o caso de Balzac, há uma crise de identidade, entre aquilo que se quer ser (escritor) e aquilo que se é por força da sobrevivência (jornalista);
Para Demétrio o romance Ilusões Perdidas foi a obra que primeiro trouxe o jornalismo para a literatura, pois baseando-se em Wisnik (1994) “a imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a literatura já é assunto da imprensa. Esta primeira referência pode compreendida como uma espécie de discurso fundador. Um discurso que traz uma série de regularidades no tempo, e sempre que se queira criticar o jornalismo lá estará Balzac sendo referido.
Na segunda parte de Ilusões perdidas está o nó das relações entre literatura e jornalismo, anunciando e envolvido pelo contraponto que o livro estabelece entre esses dois tipos de “poetas”: o jovem narcisista que, pelo triunfo e o fracasso mundanos, perde os seus ideais literários e morais, e o anônimo e impecável trabalhador-inventor que, moralmente avesso ao turbilhão da capital, luta pelo melhoramento técnico dos meios impressos. (a província tende a ser, para o lado idealizante do antimodernismo de Balzac, o celeiro dos “bons”: David Séchard não é movido pelo desejo do lucro nem da glória, embora diretamente envolvido, pela natureza do seu trabalho, com os movimentos da industrialização e do capital.).
Na verdade esta segunda Ilusão Perdida está concentrada nesta diferença. Uma das “ilusões perdidas” de que fala o autor é justamente a perda do valor estético/literário subjugado pelo valor econômico. Para Wisnik “(…) o ritmo interno dessa trajetória romanesca é desencadeado pelo choque das idealizações líricas do jovem e ambicioso autor de “Margaridas” e “O Arqueiro de Carlos IX” com a industrialização e a comercialização da literatura, sinalizada em detalhe da sua iniciação parisiense
A universalização do dinheiro e do mercado, que consolidará a vida burguesa pondo fim á sua fase de idealização heroica, está no centro desse “poema tragicômico da capitalização do espírito”, como Lukács chamou Ilusões perdidas. O que está em questão nessa poderosa obra de arte é o destino problemático da própria literatura diante dessa nova máquina de representar o mundo : o jornal diário e de massa.
