*Sâmela Gomes
Alguns momentos de nossa vida nos chamam a pensar sobre uma das maiores dificuldades que principalmente nós, ocidentais, temos: o de dar adeus. Desenvolvemos cada vez mais, culturalmente, uma aversão à perda. Tememos perder a juventude, o status, os bens que juntamos ao longo da vida. Entretanto, parece curioso que sejamos os únicos seres vivos que, ao que consta, temos a consciência sobre a morte. Sabemos que é inevitável. Por que, então, é tão difícil conviver com esta realidade e passamos a vida tentando ignorá-la?
Entendo que um dos primeiros obstáculos que temos no enfrentamento de perdas de forma geral se dá em função de termos a ilusória ideia de que tudo podemos controlar – achamos que temos absoluto controle sobre nós mesmos e sobre os planos que fazemos para nossas vidas. Temos pouca habilidade no enfrentamento do desconhecido, do que nos toma “de assalto” e rouba nossa mágica sensação de sermos donos de tudo. Por isso mesmo, aquilo que nos rouba o controle, nos rouba a ideia que fazemos de nós mesmos, como seres absolutos.
Neste sentido, o nosso processo de “Possuir”, de “Ter Controle”, nos aprisiona neste cárcere que inventamos para nós mesmos – a ideia de que se perdermos algo, somos fracassados.
Essa sensação inclusive pode assumir efeitos colaterais bastante nocivos à nossa vida: E ideia de que um companheiro/companheira é “nosso/nossa” pode nos fazer levar às últimas consequências a tentativa de não terminar um relacionamento. Toda a espécie de “sensação de dono” sobre a vida do outro pode ter um fim trágico. A sensação de sermos “donos dos filhos” pode nos afastar deles, não respeitarmos suas vontades, escolhas e seus destinos. Ou seja, tudo pode levar a um sofrimento que muitas vezes acomete a muitas pessoas em volta do mesmo problema.
Um outro ponto que também nos leva à dificuldade de vivermos as perdas é a nossa busca patológica pelo futuro. Somos cada vez mais ansiosos pelo dia de amanhã. Às vezes nos prendemos tanto à ideia do que faremos algum dia que perdemos o contato com o presente. E é exatamente por estarmos presos a um tempo que ainda não existe, que quando algo ocorre e nos impede de concretizar os nossos planos, sentimos a perda da vida como um todo. E não poderia ser diferente – se não estávamos vivendo o presente, era no ideal de futuro em que a nossa vida residia. Quando esse futuro, que ainda não existia concretamente passa a não existir nem mesmo como possibilidade, tudo desaba.
Além da perda de futuro, o luto pelo desaparecimento do que se tinha (ainda que não existisse) nesta experiência nos faz perceber o quanto não estávamos vivendo já, desde agora. Portanto, a perda não é somente do futuro – é do presente em que não se está e de um passado que se deixou de viver.
Seja pela cultura do controle e do “possuir”, seja por estarmos deixando de viver o nosso presente, o fato é que estamos criando mais e mais prisões em que os muros são construídos por uma grande mentira – a de que a vida não é atravessada pela transitoriedade, a de que o inesperado não pode acontecer e a que a morte não existe.
Que possamos pedir ajuda quando não estamos sabendo lidar com estas questões, para trabalharmos a possibilidade que a morte e todas as perdas podem servir a algo maior – à valorização da nossa vida. E fazer isso no presente, ainda que traçando planos para o futuro. Que possamos encontrar a possibilidade de compreender que não controlar todas as variáveis da vida é um dos exercícios mais difíceis – mas um dos principais que nos faz ser melhores – e deixar melhor quem convive conosco.
Em meio a esta pandemia, muitas perdas foram vividas. A morte de entes queridos, as separações, a perda de um sonho que construímos, doem. Não é fácil aceitar que quem ou o que amamos pode nos deixar. Mas é preciso pensar que existe algo para além do momento da perda. Existe a vida que segue. E nossos sonhos e quem perdemos podem ser eternos – a depender de como os faremos ser presentes na vida que escolheremos seguir.