*Julio Cortázar
Chega aquele dia que depois de ter caminhado tanto, olhado sob tantas luzes, estados de espírito e perspectivas, nasce como uma necessidade de síntese, de apreender a cidade na sua totalidade fugidia, ou de levar ao limite a ubiquidade da memória para coagular milhões de fragmentos na visão unitiva. Gostaríamos que isso nos fosse dado numa única presença, ou que algo em nós se fragmentasse até abranger o todo como talvez o olho facetado da mosca o abrange.
Nesse dia, a contemplação sucessiva das ruas ou das fotos ou das memórias torna-se um irritante adiamento daquela amálgama em que a cidade nos daria finalmente a sua imagem mais profunda. Sabemos que será impossível, que o panorama mais extenso de uma torre ou de um helicóptero nos mostrará um pouco mais do que um bom avião pode nos dar. E é talvez então que a noção de plano, de substituto cartográfico daquela insondável massa viva, aromática e sonora, nos projeta na magia, nos incita a procurar por outros meios aquilo que os sentidos limitados pelo espaço nunca alcançarão, os deslocamentos que ironicamente substituem ganhos por perdas, cantos já atravessados por outros que se abrem na repetição incessante da caixa.
Pode acontecer que o viajante pare, que renuncie à perseguição consecutiva, e que na solidão de um quarto de hotel se concentre naquele plano que cobre a mesa e que uma lâmpada auspiciosa fixa um cone amarelado que pareceria isolá-lo de a causalidade, dando-a num único bloco de conhecimento em que cada detalhe, cada canal, cada cruzamento, cada ponte e cada monumento são capturados por um olhar que subitamente se expande para abranger quilómetros de massa urbana, periferias inconcebíveis, traçados que fecham ou abrem o ritmos que dão a cada avião o tremor de um caracol, de uma caravela ou de uma nuvem petrificada.
Pode acontecer então que o viajante balance o pêndulo da rabdomancia sobre nomenclaturas conhecidas ou desconhecidas, que ao longo de uma longa avenida acompanhe milímetro a milímetro o andamento de uma longa marcha ocorrida há meses ou semanas, que hesite em esquinas que foram ou não dobrado, para retornar ao ponto de partida para reiniciar o ataque à distância. Da busca sistemática ou da recorrência do acaso, do pêndulo indiferente no território da Gare Saint-Lazare mas tremendo no cruzamento da rue Condorcet com a rue Rodier, podem chegar-nos sinais que verificaremos ou não, mas que darão uma significado diferente aos encontros e coincidências, aos signos e olhares, à nomenclatura e à combinatória oferecendo-se ao desejo e à esperança em cada passagem e em cada loja.
Mas o melhor dos planos mágicos não é proporcionado pelo cartão colorido ou pelos palitos de avelã que revelam sincronismos e constelações: a cidade tem outra imagem secreta que só será mostrada no final de uma profunda fidelidade, quando sabe que não temos vivemos por viver, que não temos caminhado por rotina. Alguma noite ela entrará em nossos sonhos, se tornará seu cenário momentâneo ou obsessivo, começará a desenvolver suas tapeçarias de perspectivas, suas cortinas de canto, seus trechos de arcadas ou trilhos de trem, e no sonho serão ela e outra, simultâneo e consecutivo, dará o que já foi dado ou inventará o que talvez exista mas que não saberemos ou nunca poderemos localizar, um parque com um lago oblongo, um café onde se joga bilhar sob luzes laranja, um portal atrás do qual se esconde o início do pesadelo ou uma sucessão interminável de corredores que terminam em outro tempo e em outro lugar. Cidade esponja, cidade pulmão respirando em nossa respiração noturna: agora estamos realmente aqui, agora somos uma bolha em seu incontável sistema de vasos comunicantes, passamos da vigília ao sono sem abandonar o território que conquistamos pela fidelidade e que foi dado a nós como dados aos gatos suas carícias, sem gratidão ou obrigação.
E ela nos dará o seu cenário mais vertiginoso, o seu próprio sonho alucinado de luzes e formas, mas também poderá cair sob os seus aspectos mais fúteis ou vulgares, zombará de nós enquanto nos dá uma tapeçaria de frutas podres naquele canto onde há não há nada a esconder, veja, nada a esperar. Serão a sua forma de nos fazer entrar ainda mais fundo, a sua rejeição de todas as qualificações privilegiadas, de todo o turismo; Como num amor profundo, beijaremos uma mão de joias onde perdura o cheiro de cebola, e esse será o encontro final, a confirmação de ter deixado para trás o falso prelúdio dos perfumes convencionais na hora do encontro.
A cidade odeia exceções, os postais que a demarcam e tipificam, as pinturas que a elegem, as canções que tentam torná-la única; Ela é o amor total que cheira e cheira, que chega ao cúmulo do delírio e depois, com um gesto simples e necessário, urina no penico ao pé da cama, derramando a cada tantas horas sua mínima cachoeira, entre beijos e alho-poró fervendo para a sopa do final do dia.
Julio Cortázar