*Franklin Jorge
Oriundo de uma das famílias mais antigas e ilustres do Assú, Solon Wanderley, ao contrário de seu irmão, seria, segundo a psicologia, um tipo pícnico, de pequena estatura, gordo, espirituoso e amável. Proprietário, com o irmão, da célebre Padaria Santa Cruz, famosa por seu biscoito aromatizado com cravo que tinha consumidores até no Rio de Janeiro, era o que se podia classificar como a memória viva da cidade, cuja crônica secreta conhecia melhor do que a palma da própria mão.
O fundador do ramo brasileiro dessa família, Gaspar de van Der Ley, estabeleceu-se em Pernambuco, como Capitão da Guarda do Príncipe Maurício de Nassau, teve uma grande descendência que se espalhou pelo Brasil inteiro. Gonçalo se radicou como proprietário rural no Vale do Assú, onde fundou um latifúndio batizado como Baviera, certamente em homenagem a terra de antepassados seus, que originou em 1948 o município de Ipanguaçu, desmembrado de Santana do Matos, antes a Vila de Sacramento.
Era, pois, Solon e seu irmão Afonso, velhos solteirões com fama de pedófilos, proprietários da tradicional Padaria Santa Cruz, onde começaram a vida como empregados, remanescentes dos primeiros assuenses, origem das principais famílias patrícias do município que abasteceu de carne bovina três capitanias e em certa época teria sido a capital econômica da província do Rio Grande [do Norte.]
Me lembro que, quando menino, as empregadas de minha avó me instavam a evita-los e a não atender a seu chamado, se por acaso o fizessem, o que me deixava sumamente intrigado, pois não havia explicação para tal advertência. Somente quando já ginasiano é que vim a saber que tal precaução se referia aos seus hábitos sexuais…
Já adulto, fiz amizade com Solon e costumava ouvi-lo sobre os costumes antigos e a história privada do Assú, que sabia de cor e salteada, em detalhes às vezes sórdidos e pitorescos, como os que se referiam á origem as fortunas locais, algumas baseadas em algum ato criminoso ou amoral. Como a do chefe de tradicional e respeitável família, de origem pobre ou apenas remediado, aceitara acompanhar um velho amigo que ia receber vultuosa quantia em dinheiro, mais de 500 contos de reis em moeda da época, proveniente da venda de gado ou de propriedades rurais então muito valorizadas. De volta para casa, teria assassinado o amigo e se apossado do dinheiro que serviria de lastro a sua fortuna.
Tinha uma conversa agradável e entremeada de sorrisos e cortesania, própria de alguém, como se dizia então, que tivera berço. Numa dessas conversas, talvez a última que tivemos, deu-me a receita original do famoso biscoito Flor de Assú, escrita por seu criador, numa bela caligrafia. É a receita original, ressalvou, feita com manteiga de qualidade e essência de cravo. Com o tempo e a crescente carestia, foi sendo adaptada, para baratear custos e se tornar acessível ao bolso das famílias. O Flor do Assú que saboreamos atualmente seria uma mera contrafação do biscoito originalmente criado pelo pai do poeta Renato Caldas.
Gostava de ouvi-lo e de saber os segredos de uma crônica secreta às vezes repleta de escabrosidades que em grande parte eu preferia não registrar para não cair na tentação de escrevê-las algum dia. Corroborou o que me contara, em minha adolescência, Manoel Montenegro, Nenéo, em férias no Assú, sobre um velho costume popular no mundo ibérico que terá inspirado ao escritor Gabriel Garcia Márquez, Prêmio Nobel colombiano, sua novela Veneno da madrugada, na qual um velho padre Mantém o hábito de colocar sob as portas das casas panfletos contando segredos das famílias que ouvira em confissão, como adultérios, roubos, relações incestuosas, vícios secretos, traições e assassinatos que constituem segredos, segundo ele, ‘’fechados a sete chaves’’ por gerações e gerações.
Nenéo, em conversa na casa de sua sogra, contou-me que quando adolescente, de férias no Assú, o jornalista Palmério Filho lhe mostrara um grande livro de capa dura improvisada que guardava numerosos desses panfletos que revelavam segredos de família certamente obtidos em confissão por algum pároco psicótico. Esse livro atulhado de panfletos, já bastante volumoso, passara de mão em mão de antepassados do fundador de A semana, importante semanário que por mais de 30 anos circulou no Assú.
Um dos fatos mais curiosos que ouvi de Solon diz respeito à passagem do Cometa de Haley, em 18 de maio de 1910, provocando um grande pânico na população que acorreu em estado de choque à Praça da Independência (atual Getúlio Vargas), pois se acreditava então que seria o fim dos tempos. Solon teria quatro ou cinco anos, mas nunca esqueceu aquela noite de pavor que promoveu ao pé do Obelisco, no centro da praça, um ato de contrição coletivo no qual os assuenses confessaram em voz alta seus pecados ciosamente guardados. Lembrava-se Solon que senhoras consideradas respeitáveis mães de família confessaram seus adultérios, moças virtuosas, seus abortos secretos. Uns arrancavam os próprios cabelos, aterrorizados, temendo o Julgamento Final…
Quase oitenta anos depois desse fato, Solon me confessava que o que mais o aturdia então era o silencio que se fez sobre essa inusitada ocorrência. Como o mundo não se acabou e todos sobreviveram à confissão pública, não se falou mais no assunto. Durante anos, Solon interrogou os sobreviventes desse fato fatídico, na tentativa de obter alguma informação a respeito dessa noite que lhe marcara indelevelmente a memória.
Foto Arquivo Pedro Otávio