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O menino rural

Fundador de Navegos resgata fragmento inspirado em A Idade dos Nomes, livro que contem suas memorias da casa do Estêvão. Uma obra da predileção do autor por conter muito dos que o viram menino por essas várzeas e tabuleiros do Assu.

*Franklin Jorge

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Havia no Estêvão e arredores esse velho costume, aos sábados a noitinha, após a ceia, de nos reunirmos na sala de Pedro Pixuí, a luz das lamparinas, para as leituras de Cordéis e almanaques etc. Na sala de chão batido, varrida e revarrida, sem poeira, brilhando. Dona Luìsa tem a fama de mulher asseada. Exigente na limpeza da casa, na própria aparencia fisica. Tinha sensibilidade artística.

Dedicava-se a Papelografia. E da revista O Cruzeiro surpreendia-nos com o que fazia ao recortar o Amigo da Onça, a criação imortal de Péricles, um pernambucano. Forrava com a sua arte o armário da louca feito de caixões de sabão, quatro pratos fundos, de ágata, quatro canecas, quatro colheres, três pequenas xicaras de café, de delicada porcelana chinesa, quatro pequenos pratos; dois potes de vidro, de café e açúcar branco, para as visitas que me incluíam.

Porém o que me despertava a gulodice eram aqueles furos de mel que restava no caco de barro em que se torrava o café impregnado de raspas de rapadura.  Sentia, ao saboreá-lo. O gosto amargo do café. Quatro colheres de sopa. Um par de talheres, cheio de ornamentos, que supus de prata e filigranas de prata-dourada.

Não havia se não uma cama de rústica e um baú de flandres, além duma arca na cozinha. Nenhuma mesa. Além dos tamboretes e dos potes de água fresca. Comíamos sobre esteiras bem asseadas dispostas no chão de cozinha. Dona Luiza, nessas horas, comia com a mão, amassando o bocado com agilidade e arremessando-o na boca aberta. Era como comia em sua casa. Lá em casa já usava os talhares. Não colocava o café para esfriar no pires, de onde o tomava, como muitos sertanejos. Só bebia leite fervido com umas pedrinhas de sal. Não dispensava do uso diário um lencinho de cambraia com rendas.

Não dispensava talco e a colônia Leite de Rosas. Estava sempre bem aviada. Falava com muita doçura o meu nome. Mas temia, que eu, pensando muito não me criasse. Costumava advertir minha avó. Pensando desse jeito esse menino não se cria.

Com o marido que viera tomar conta dessas terras e plantações, chegou de repente em nossas vidas, já idosa, sem filhos, predestinada a maternidade, encontrou em mim um ‘’filhinho’’, como dizia. Mimava-me, contando suas memórias. Creio que vieram das antigas terras do Capitão Olinto Rocha, a quem bandoleiros invadiram a fazenda e lhe cortaram o dedo para roubar um anel de esmeralda com diamantes. Porém, desse tempo, traumatizada ainda, nada dizia. Fatos como este eram tabus. Falavam-se por alto alguns assuntos, geralmente para enfatizar a gratuidade do mal.

Seu Pedro era, além de agricultor, poeta, violeiro, mestre-escola, havia muito sem discípulos. Quando arranjava um, muito raramente ao tempo em que morou no Estevão de depois no Panom, esmerava-se em instruir em Português, Gramática, História, Geografia, Ciências, Mitologias. Ensinava por amor ao Saber. Não cobrava nada. Era baixinho, moreno, cheio de carnes sem ser gordo, muito cerimonioso e atencioso. Usava chapéu de palha, uma parelha de roupa de brim e de cáqui, além da roupa que usava em casa, amava uma xicara de café recém-coado. E a chuva humílima a fecundar o chão propicio.

Dona Luiza era uma mulher comprida, esguia, de ancas altas. Usava saias que arrastavam no chão. Casacos com mangas 3 quartos. Saiote franzido sob o cós em volta da cintura. Sandália de couro curtido. Não sofria da coluna. Não tinha artrose nem ciática. Mas queixava-se dum Defluxo intermitente que aliviava com mel e xaropes.

São lembranças vivas. Dos primeiros seres mais próximos, que profundamente nos marcam, obsessionam-nos, perseguem-nos. Quando nos é dado nomear os seres que compõem uma mitologia afetiva da qual provém a obra.