*Carlos Russo Jr.
“Como poderia em um livro escrito a respeito dos Espíritos Livres deixar de citar o nome de Lawrence Sterne, que Goethe honrou como o mais livre de seu século?”, diria Nietzsche do Mestre que inspirou nosso Machado de Assis nas suas obras da maturidade. Terá sido Sterne o escritor de espírito mais livre de todos os tempos, segundo muitos de seus estudiosos.
Sterne foi o grande mestre da dubiedade e criador de um estilo de arte em que a forma determinada é constantemente quebrada, deslocada, revertida ao indeterminado, de tal forma que significa uma coisa e ao mesmo tempo outra.
O leitor deve dar-se por perdido se toda vez quiser saber com precisão o que Sterne pensa propriamente sobre uma coisa; se diante dela faz um rosto sério ou risonho, quiçá dá uma piscadela para o leitor! Notável como criador, sabe e igualmente quer a um só tempo ter razão e não ter, enovelar a profundidade e a farsa, como bem foi observador por um de seus leitores.
A vida (1759) e Opiniões de Tristram Shandy (1767), do pastor e escritor irlandês Laurence Sterne, tiveram nas Américas um leitor mais que atento, um verdadeiro e leal discípulo: Machado de Assis, cem anos após a morte do Mestre.
Machado de Assis, ultrapassada a fase romântica quando ainda acreditava que a sociedade paternalista e escravocrata poderia tornar-se mais humana, envereda pelo caminho do sarcasmo e do cinismo da escrita com duplo e triplo sentidos, em que um narrador, nunca o autor, sempre se colocará no papel das elites dominantes.
Sem jamais colocar em questão a originalidade ou a energia criativa do maior escritor brasileiro, é de suma importância registrar que o espírito de Sterne libertou, desde os anos de 1870, Machado de quaisquer exigências meramente estruturais que o Brasil Imperial e escravocrata, após a República corrompida gerada por um Golpe Militar, lhe pretendessem impor ou enquadrar.
Mas voltemos a Nietzsche e a Sterne: “Suas digressões são ao mesmo tempo continuações da narrativa e desenvolvimento da História.” Machado escreve: “Eu gosto de ver a política entrar pela literatura; anima a literatura a entrar pela política, e dessa troca de visitas nasce a amizade”.
O estilo da narrativa de Tristam Shandy é original: enlouquecidamente divagador e também infinitamente criativo. Yorick, alter ego de Sterne,, morre mas retorna algumas vezes depois de morto em ressurreições que inspirariam Machado de Assis a descrever Brás Cubas em suas memórias póstumas.
É bem verdade que Machado de Assis, verdadeiro “Mestre na Periferia do Capitalismo” (Schwarz), surge em nosso universo como uma espécie de milagre; uma demonstração da autonomia do génio literário em relação tanto a fatores como tempo e lugar, política e religião; e a todo o tipo de contextualização que supostamente produz a determinação dos talentos humanos. Talvez, tomando emprestado a Próspero (Shakespeare), o espírito de Ariel lhe traga sempre a presença de seu verdadeiro e por ele assumido Mestre, Sterne.
“Sterne troca desapercebidamente os papéis e é logo tão leitor quanto escritor; seu livro é como um espetáculo dentro do espetáculo, um público de teatro diante de outro público de teatro”, reforça Nietzsche em sua leitura.
Se hoje o mundo se esqueceu do nobre pastor protestante Sterne, ele colocou seu discípulo fiel, Machado de Assis, dentre os primeiros romancistas de toda a história da humanidade, reconhecendo que ele possuía o poder de construir através da linguagem realidades sensíveis, concretas, e, no entanto, impregnadas de vida, costumes e mistérios do espírito.
Nietzsche ressalta que a alma de Sterne também saltava com irrefreável intranquilidade de galho em galho, por tudo o que havia entre o sublime e o ignóbil, e o bem e o mal eram por ele fartamente conhecidos. “A felicidade é uma aquiescência tranquila e uma doce ilusão” (Sterne).
Para o leitor atento, sua obra da maturidade machadiana estará sempre repleta de enigmas, com a expressão de sua amargura e decepção para com os homens; suas associações serão revestidas pela sátira e pela metáfora. Poderia ter dito, como Sterne, que a censura é o imposto da inveja sobre o mérito..
Aliás, somente por um breve período Machado se permitiu uma linguagem crítica direta, abandonando as máscaras e disfarces sternianos em contos de Relíquias da Casa Velha, escritos logo após a morte de Dona Carolina. No primeiro conto do livro, “Pai contra mãe”, configura um grito de escárnio contra a hipocrisia social. “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel”.
“A arte, dizia Machado, não deve desvairar-se no doido infinito das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das massas, copiar, acompanhar o povo em seus diversos movimentos, nos vários modos de sua atividade”.
Em Esaú e Jacó, uma obra repleta de enigmas, segundos sentidos e injunções históricas, o autor logo avisa: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava ou parecia estar escondida.”
O discípulo jamais se desviou dos ensinamentos do Mestre. “Sterne compraz-se de produzir no bom leitor um sentimento de insegurança, um sentimento quanto a estar parado ou deitado, um sentimento que é extremamente aparentado com o do flutuar”. (Nietzsche). Tal e qual o poeta Tito, no conto “No País das Quimeras” machadiano.