*Fernando Schüler
Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.
Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.
No mundo atual tudo se vulgarizou. A difamação virou arroz com feijão, em especial no ambiente tóxico das redes sociais. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.
A disseminação do ódio fez do hater um tipo banal. Pode ser aquele primo distante que você encontrava em uma festa de fim de ano, e numa manhã qualquer encontra desejando a morte de algum desafeto político, no facebook. Ou pode ser aquele poeta suave que você conheceu anos atrás, e num belo dia lhe faz um ataque racista na internet, por uma razão qualquer.
Diria que haterismo é um tipo vulgar de absolutista moral. Jonathan Haidt e Greg Lukianoff mostraram isso em seu “The Coddling of American Mind”. O sujeito percebe a vida como uma luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, e tem a certeza idiota que representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.
O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe mas ganhou escala infinita no mundo digital. Outro esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Ainda outro esconderijo é a tribo. Ele fala para a tribo, para os especialistas na própria opinião. Vive numa banheira morna de viés de confirmação.
Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.
Em ambos, o sistema está prestes a ruir. A divergência é para que lado. A linguagem é surpreendentemente parecida. Os palavrões variam, mas são sempre abundantes. Há alusões a animais (gado, jumento) e à tediosa terminologia do século 20 (comunistas, fascistas, neoliberais).
Como previsível, ambos os grupos consideram que a barbárie e o fim da linha ficam sempre do outro lado.
A partir daí vale tudo. Sua expressão mais comum é a falácia ad hominem, atestado claro de que alguém não dispõe de argumento nenhum. Ela pode variar de um simples palavrão até um “textão” em que a ofensa vem travestida de palavrório acadêmico. Seu fio condutor é sempre o mesmo: o foco é agredir, diminuir, ridicularizar o oponente, não refutar seus argumentos
Há uma ampla literatura sobre as raízes do haterismo na psicologia humana. Uma boa referência é o livro de Hugo Mercier e Dan Sperber, “The Enigma of Reason”. Sua tese diz que a mente humana evoluiu para guerrear por ideias, para justificar nossas ações, conduzir a tribo e destruir a tribo do outro.
O kantismo e sua racionalidade universalista, apelo à imparcialidade e à disciplina no “uso público da razão” seriam uma espécie de antinatureza. A razão iluminista pode expressar o que temos de melhor, mas é rara. Aqui no chão rondamos o estado de natureza.
A internet, por fim, piorou tudo. Sua marca é a reação imediata e não reflexiva. No mundo pré-digital, as instituições produziam alguma moderação nas opiniões. Seu tempo era diferente e nos obrigava a filtros e a algum tempo de espera.
Nas mídias sociais de hoje, muito antes de baixar a curva da raiva já tuitamos duas ou três vezes. Tudo em um ambiente de baixa empatia, destituído de pessoas de carne e osso, que olham na nossa cara, transpiram e com a qual podemos nos identificar.
A internet funciona como uma imensa máquina de não esquecimento. O inferno de Nietzsche, feito da lembrança eterna de velhos ressentimentos. Estranho mundo em que os contextos mudam mas as imagens e palavras estão lá, congeladas no tempo. Cada gesto, cada erro ou acerto, tudo pronto a ser retirado do freezer ao sabor da raiva.
No início dessa crise, escrevi que a raiva e a tribalização iriam crescer. As pessoas perderiam muito do contato pessoal e o país de cada um, pouco a pouco, se confundiria mais e mais com sua timeline.
Talvez tenha exagerado, mas temo que não.