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O outro nome da poesia [2-3]

Inédito em livro e publicações impressas, Francisco Alexsandro Soares Alves surge como um grande acontecimento literário, como um poeta-crítico, o preceito verlainiano. Autor de Pulsão, que tive o privilégio de ler em primeira mão, poder-se-ia dizer que se trata de um “poeta-fundador”, um criador enfim que conseguiu estabelecer parâmetros e ultrapassar fronteiras, enquanto permanecemos vaidosamente provincianos.

*Franklin Jorge

O que o levou a escrever Pulsão? Por que Pulsão?

Pulsão por conta da vida. O que a move. O que nos move e dá sentido à vida. Para mim é a arte e a contemplação, o detalhamento e toda a carga cultural do corpo masculino. Eu não desconecto a arte dos sentidos. É da carne. Do corpo. O prazer estético é antes de qualquer coisa uma forma de gozo. Se faz bem para o corpo, faz para o espírito. De forma que as satisfações corporais precisam vir antes de tudo. É a pulsão. Separações como corpo e espírito, tão caras a Platão e atualizadas nas epístolas paulinas cristãs, já não fazem sentido para a modernidade. Tudo se vive e se morre no corpo. E como objeto de contemplação estética, o corpo masculino tem preponderância para mim. É assim que vejo a arte. Masculinamente. A pulsão existe a partir do homem. Porém não falo aqui do homem enquanto termo universal que também abrange a mulher. Falo unicamente do gênero masculino. Do macho. Eu observo que a cultura amoleceu. Houve um amolecimento da cultura, e consequentemente da arte e do homem. Mas nós precisamos masculinizar a cultura novamente. Falo novamente porque a cultura já foi masculina um dia. Na Grécia antiga o corpo nu do homem era a medida de todas as coisas boas, belas e verdadeiras. As esculturas masculinas gregas sempre apresentam este homem nu. Ao passo que as esculturas femininas gregas sempre apresentam a mulher vestida ou parcialmente vestida. Porque a cultura grega é masculina. O belo está no gênero masculino. Em tudo o que é do corpo masculino: em nosso pênis, em nossos testículos, em nossas nádegas, em nosso peito, nas linhas retas da beleza masculina. Isto é pulsão. Isto é vida. Isto é belo. O eterno feminino que Goethe anuncia no final do Fausto foi uma derrota para a cultura ocidental. E nem precisou de um século inteiro para essa constatação. Já no século XIX, Nietzsche, em seu livro Aurora, lança o desafio e a polêmica: precisamos masculinizar a arte. Por isso que o primeiro verso de meu livro é No belo nu do corpo masculino. Minha poesia é fálica, masculina, máscula.

Hoje há mais poetas que poesia. Como vê a proliferação de livros de poesia, geralmente de má qualidade?

É o poeta que não é leitor. Que nunca ocupou-se em ler os clássicos. Que nem sequer os conhece. Esse fenômeno também ocorre em outros meios. Há mais cantores do que canto, por exemplo. Cássia Eller pensava que era cantora, conquistou muitos. Uma mulher sem a mínima técnica, sem preparo, que emitia seus grunhidos, mas que conquistou um nicho. Adorno fala da regressão da capacidade auditiva. Eu falo que há uma regressão da capacidade intelectual e de julgamento. Se nivela por baixo. Essa regressão da capacidade intelectual é fruto do descaso com os livros. Ao menos com os grandes livros, os que interessam. No Brasil se lê a Bíblia como se fosse um grande ou mesmo o maior livro da humanidade, fora isso, é sempre autoajuda.

Falta senso crítico. Falta debates sérios sobre literatura. Um diálogo franco e permanente sobre a arte de escrever que não desemboque em política ou em qualquer outro assunto. Um debate sobre estética unicamente. Refina-se o gosto, refina-se a prática. Porém como pode haver um debate sobre literatura e estética, se o poeta sequer tem conhecimento sobre estética! Schiller, Hegel, Kant, Nietzsche, Benjamin, Deleuze! Onde podemos encontrar pessoas para um debate estético desse nível? Ninguém pode achar que é um bom poeta porque sentiu tristeza com a chuva na janela ou porque se revoltou contra as injustiças sociais e então escreveu três versos.

Um outro problema da poesia hoje é que o poeta se afastou do mundo. Se isolou. A poesia é hermética ou é um desfile de idiossincrasia e solipsismo. A tristeza mística e sombria do mundo interior do poeta parece que é o único tema que o mesmo vê com alguma relevância. Então temos sempre poesias repetitivas que parecem que foram escritas por uma coletividade, muito parecidas. A poesia foi banalizada.

Eu tive recentemente o prazer de descobrir um poeta que escreve poesia de qualidade. Li Um bêbado sonhador, do poeta Marcos Campos. Ele sabe o que escreve e é uma luz. Poemas como Sarajevo, o poeta e o profeta me tocaram sensivelmente.

Como a poesia se relaciona com a música?

Há muitas formas dessa relação ocorrer. Na Grécia Antiga, e atemporal, a poesia era declamada ao som da lira. A metrificação é uma outra maneira de relacionar estas artes. Bilac, no seu Tratado de versificação, escrito com Guilherme Passos, sempre nos lembra da questão da musicalidade, sobretudo quando fala da escansão. Para Schiller, esta relação não era muito importante. Ele afirmará que uma boa poesia não produzia boa música. Alguns anos depois, Beethoven usaria a Ode à alegria, de Schiller, como base para o quarto movimento da Sinfonia em Ré menor, a Nona… Ironias do destino… Mozart achava que a poesia é escrava obediente da música e portanto, em uma ópera, a palavra nunca daria a posição final. Schopenhauer desprezará por completo qualquer preponderância da poesia sobre a música, e mesmo uma união. Nietzsche vê a poesia e a música como irmãs, onde a palavra ajuda o homem a domar a força irracional da música. Sua wagneriana conceituação estética, Apolo e Dionísio, que funda na base de seus estudos sobre tragédia grega e drama wagneriano, pode ser encarada como uma análise dessa relação entre palavra e som, entre poesia e música. Para Wagner, contrariando Mozart, a música precisa obedecer aos acentos melódicos e rítmicos da língua vernácula. É o que ele faz, por exemplo, no primeiro ato da Valquíria, onde a acentuação, a ársis e a prosódia da gramática e da fala alemãs são desenhadas e sublinhadas na música.

Eu gosto de pensar essa relação em termos de naturalismo e simbolismo. São correntes estéticas com proposições diferentes, evidente. Porém quando temos uma canção, temos poesia e música. Imagino que a poesia, a palavra, seja esse elemento mais naturalista, posto que objetivo; a música é o elemento simbolista, subjetivo, que perpassa a poesia, acentuando ou não uma palavra, e assim levando à fruição estética.

A música popular brasileira é um ponto peculiar nessa relação. Afirmam que em nenhum outro país a música popular tem letras tão belas. Não posso concordar e nem discordar disso porque não conheço a música popular de outras terras. Porém essa relação no Brasil tem muitos problemas. Uma letra de música é poesia? Recentemente Chico Buarque recebeu o Prêmio Camões. Não nego que sua contribuição para a história política do país seja gigantesca, mas eu quero me prender às questões de sua estética. Construção possui versos alexandrinos. Seus finais com termos esdrúxulos. Castillo, citado por Bilac no Tratado, afirma que o uso excessivo de palavras esdrúxulas torna a poesia vulgar ou ridícula. Eu lembro que Chico comentou um acontecimento sobre esse texto. Uma vez ele recebeu a visita de João Cabral de Melo Neto, que elogiou a poesia de Construção. E Chico perguntou o que ele havia gostado nele. Das proparoxítonas no final… E deu uma risada… Porém, palavras proparoxítonas conduzem ao grandioso, e se levarmos em conta que Chico fala de um operário, o texto ganha uma abrangência política muito forte. Porém e graças à MPB, o público tende a confundir música com texto ao ponto de pensar que boa música é bom texto. É comum frases como essa música não tem letra, mas se lembramos de Schiller, uma música sequer precisa de texto. E mesmo as que possuem texto, sequer precisam de bom texto.

[Conclui amanhã]