*Franklin Jorge
O soneto não seria, em tempos hodiernos, um anacronismo?
A grande arte nunca será anacrônica. Hoje se valoriza o verso livre. Essa valorização teve seu apogeu na Semana de 22. O brasileiro sempre destruiu sua história. Seu legado. A última flor do lácio floresceu viva nos sonetos de Cruz e Souza, de Olavo Bilac, de Augusto dos Anjos, por exemplo. Todos sonetistas. Então vem os poetas da Semana de 22 com suas críticas aos que denominavam de sapos. Eu penso que a Semana de 22 é muito superestimada. O Brasil perdeu com o desprezo de 22 aos sonetistas. Oswald de Andrade chegou a afirmar que os mesmos não diziam mais nada a sua geração. E hoje aquela geração de 22 diz o que para nós? Eu os vejo como uma turma de filhinhos de papai da elite paulistana. O que ficou daquilo? Qualquer soneto de Augusto dos Anjos ou os sublimes sonetos de Cruz e Souza são maiores do que tudo o que foi lido no Municipal de São Paulo em 22. Falar do cotidiano, para mim, já deu. Não me diz nada. Usar palavras de gosto popular para escrever poema, jamais me dirá algo. Quando eu era estudante do Ensino Médio achava atraente a postura rebelde de 22. Porém com o tempo…
Hoje qualquer um é poeta porque faz verso livre. Aliás o próprio Bandeira que fala que graças aos modernistas, qualquer um virou poeta. O que ficou para mim dos que participaram de 22, em termos de literatura, é a busca de Mário de Andrade por uma identidade nacional, porém o potiguar Câmara Cascudo fez isso de maneira infinitamente melhor e mais grandiosa, e o Cobra Norato, de Bopp. Ao menos Mário não era o moleque irresponsável que Oswald quase sempre foi. Pronominais, um acontecimento banal, enunciado de maneira jocosa – poderia ser notícia de jornal de grêmio estudantil. Isto foi novidade para a época. Porém novidade não é poesia. Os jornais todos os dias estão cheios de novidades. 22 foi uma derrocada para a poesia brasileira, uma rasteira. Venceram. Mas ainda precisamos de alguém que tenha um olhar mais crítico sobre aquele circo de filhinhos de papai. Venceram. E a poesia hoje está como? Tem gente que pensa que falar do cotidiano com coloquialismo e verso livre é ser revolucionário…
E quem hoje se interessa por poesia? Segundo os cultivadores do verso livre, isto livrou o poema das amarras da métrica e da rima. Porém também livrou do público. A poesia tornou-se banal. Tornou-se povo. E o povo não gosta do povo. O poema é processo, é político, é revolucionário, é reacionário, eu quero também um poema que seja arte apenas.
Que tenha estilo e não seja uma entrega sempre a si mesmo em uma amorfia sem qualquer responsabilidade.
A grande arte nunca prescindiu de uma forma. A tragédia grega. A sonata. O soneto. O mote e a glosa. São todos atemporais. A forma fixa não aprisiona. Ela mostra um caminho. Porém precisamos de disciplina. A disciplina nivela o espírito por alto. O soneto, como grande arte que é, é para ser maturado, não é de momento, não é da pressa. Ouvir a lira de Apolo, equilibrada na métrica rígida e na rima obrigatória, pés firmes, me toca como algo carnal, Franklin. Quando estou escrevendo um soneto, é carnal, é corporal. É sexual. O sexo é uma relação que envolve troca, mas também domínio. O soneto é o ente passivo. O poeta é o ente ativo. É um prazer refinado, dominá-lo. Porém hoje há um amolecimento dos sentidos e da cultura de forma geral.
O poema que você me dedicou é um soneto inglês. Essa forma usada por Shakespeare é quase desconhecida dos nossos sonetistas. Por que a escolheu?
A forma do soneto shakespeariano foi escolhida exatamente por isso, por ser pouco usada por nossos poetas, embora Pessoa tenha escrito 35 sonetos ingleses, o que é, de qualquer maneira, um número pequeno. Eu aprecio as formas fixas da poesia. E as duas formas de soneto, a italiana e a inglesa, possuem uma melodia diferente. A inglesa é mais contínua, digamos, e mais diversificada no esquema de rimas e favorece, ao meu ver, uma maior liberdade de ideias. Além disso, dado aos poucos exemplos desta forma na língua portuguesa, a tarefa se constituiu em um duplo desafio: fazer uma partitura literária de tua voz e usando uma forma fora do habitual em nossa língua. Uma única estrofe onde o poema deve desaguar por inteiro; ou numa única arcada de violoncelo, expressiva e inesquecível. Quando o estava compondo eu queria exatamente isso. Ele diz respeito a uma característica sua que tem a ver com música. E a música é contínua. As imagens que coloquei nele são considerações de mais de 20 anos, desde que te falei que iria escrever um poema sobre tua voz. De lá pra cá, todos os anos, viam um verso ou dois, nunca fiquei nenhum ano sem meditar neste poema e escrevê-lo, embora depois rasgasse o mesmo pois a ideia ainda não estava no papel na forma que queria, então o abandonava e voltava novamente para o início. Porque não poderia brincar com isso.
A impressão que tua voz me causou foi muito profunda. Então pensava bons vinhos demoram para maturar, sem pressa. É como o movimento lento de uma sinfonia. Então, numa noite no início de 2020, enquanto passeava com meus cachorros na Praça da Paróquia São Francisco, aqui no Satélite, uma coruja pousou na areia da praça e eu percebi e parei para vê-la, porque amo muito corujas, animal e um dos símbolos da deusa Atena. Quando ela alçou voo novamente, o poema simplesmente foi concluído em minha mente. Nesse instante em que observo seu voo. Assim, estava caminhando, já passava da meia-noite. Em meio a toda solidão humana noturna, no meio da praça. O vinho estava pronto. Pensando em ti, diante da casa de Deus em um passeio com meus cachorros e o animal símbolo de Atena com seu voo silenciosíssimo como testemunha. E eu comecei a recitá-lo, porque o passeio com os cachorros ainda não havia terminado. Porém eu sabia que não me esqueceria de um verso sequer. Mas o recitava tranquilamente, ao mesmo tempo que sorria. Quando cheguei em casa o anotei e o lapidei mais ainda.
Finalizando esta longa conversa, transcrevo a seguir um exemplo de sua Arte Poética:
GRAVES
(para Franklin Jorge)
Imanente crepúsculo da fala,
Ângelus natural de ente profano,
Crepuscular notívaga cabala,
Entardecer calmante mariano,
Gravíssimas arcadas destes cellos,
Ressoam em meu espírito plangentes,
As notas mais soturnas de teu melos,
Altos aveludados e frementes,
A musicalidade do sossego,
Que teus acordes graves encerram,
Palmeira de veloso sabor grego,
Caetana e apolínea, descerram…
Tua voz é canção, contemplação,
Altar silencioso, comunhão.
Alexsandro, Pulsão.
[Fim da entrevista]