*Alexsandro Alves
“O Livro de Jó” é o mais filosófico da Bíblia. Victor Hugo o amava e o considerava um texto entre os maiores de nossa civilização. Narra a história de Jó, servo de Deus, sempre correto, que, do dia para a noite, perde tudo o que tem. Agora pobre, Jó veste-se de sacos e seu corpo é tomado por feridas, como um leproso. Seus amigos o instigam a maldizer Adonai por tudo o que lhe tem advindo. Sua esposa o aconselha que vá ainda mais longe: “amaldiçoa a Deus e morre”. Esse “morre” pode significar tanto a entrega à morte quanto o suicídio.
Várias coisas me chamam a atenção nesse livro: o relacionamento de Adonai com Satã, o problema do mal e seu final.
Diferente da crença mais comum, Adonai e Satã não são tão inimigos assim. No início do livro, de forma bem prazerosa, quase uma conversa de bar entre amigos, há um diálogo entre Adonai e Satã.
Adonai está no Céu com seus anjos quando Satã, aquele que segundo Isaías e João, o Amado, foi expulso do Céu no princípio dos tempos, simplesmente adentra o celeste novamente e Adonai puxa-lhe assunto.
“De onde vens?” Lhe pergunta Aquele que tudo vê.
“De lá e de cá…” Responde displicentemente Satã.
Adonai parece mesmo querer conversa com seu filho malcriado e revolucionário e insiste.
“Observaste tu a meu servo Jó? Como me é fiel?”
“Porventura teme Jó a Deus debalde? Tu o encheste de todas as bençãos possíveis.”
“Eis que tudo o que ele tem está em tuas mãos!”
E assim inicia o jogo entre Deus e o Diabo pela lealdade de Jó. Satã faz Jó ficar pobre, adoece seu gado, que morre, sua plantação não germina, sua pele é tomada por feridas, os amigos lhe amaldiçoam e dele desconfiam, pensando que, para ter tanta miséria sobre ele, deve estar pecando diante de Adonai. Porém Jó permanece fiel.
O problema da existência do mal – ou, em outras palavras: por que o bom e justo sofre, é uma questão tão filosófica quanto o problema da morte. Para ao menos tentarmos entender, e mesmo inicialmente, devemos nos ater bem mais à moral grega do que à moral bíblica. A Grécia Clássica afirma que a única coisa que faz o homem incorrer contra os deuses é a “hybris” – o excesso. E Jó, em nenhum momento, se excede. Sua franqueza e humildade diante da adversidade são estoicas. Há uma corrente subterrânea de nobreza no personagem, uma “areté” homérica: – a excelência e a virtude. Uso aqui o termo “homérico” não no sentido moderno de “enorme”, mas para ligar essa “areté” de Jó aos personagens de Homero. Mas se em dado momento, conforme lemos nos gregos, os personagens encontram, por fim, sua “hybris”, Jó encontra a “sophrosine”, a moderação, e assim se enche de sabedoria. O “ser em si mesmo”, ontologicamente, de Jó, é a paciência enquanto virtude a ser alcançada – esta é a sua “virtù”, a sua capacidade de dominar e controlar o momento. Entendidos a partir da moral grega, bem e mal são lados de uma mesma moeda. Talvez essa conversa entre Adonai e Satã queira demonstrar isso para uma moral diferente da grega. O bem sucede ao mal e o mal ao bem sempre e de forma natural. A questão não são os motivos do sofrimento e sim, a maneira de sofrê-los. E parece que Jó entende isso.
O final é bíblico e não grego: se para compreendermos os acontecimentos precisamos dos áticos, para o final basta sermos modernos: tudo termina feliz! É tudo restaurado a Jó. Satã perde e Adonai é coberto de louvores. Aqui, por mais que queiramos ser gregos, não é possível. A moral final é de obediência, que é um motivo condutor bíblico desde o Gênesis. Esse final fala mais aos nossos tempos: recompensa e não crescimento.