*Helena Coimbra
Raul Brandão (1867-1930), vulto maior da literatura portuguesa, deixou uma das obras mais diversificadas na história da literatura portuguesa. Jornalismo, romance, narrativas de viagem, teatro, história, e sempre, mas sempre, uma enorme atenção ao efeito estético da palavra. É, por isso, profundamente injusta a desatenção de que tem sido alvo um autor tão marcante da nossa literatura.
“O Pobre de Pedir” (Ponto de Fuga, 2017 – reedição) foi uma obra, também ela, caída no esquecimento. Para a História ficaram sobretudo Húmus, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas (relato de uma viagem aos Açores e à Madeira). Como disse Vasco Rosa, editor e pesquisador literário, sobre Raul Brandão, “este escritor tem aquilo que a literatura deve ter: impacto sobre as pessoas, e esse impacto foi tendo variantes conforme as estéticas de cada leitor e resistiu”.
Editado postumamente em 1931 e escrito com a saúde muito debilitada, Raul Brandão não fez sequer a revisão de “O Pobre de Pedir”. Esta novela, escrita em três meses, deixa transparecer todo o profundo humanismo e transcendente sensibilidade de Raul Brandão, um autor que concentra na escrita uma espiritualidade e uma poesia que o identificam. Há, nesta obra, um particular desalento sobre o sentido da vida,”(…) feita de hipocrisias, de mentiras, de convenções e palavras(…)”, e um monólogo interior diante da morte – “Eu e todos, eu e a sombra desmedida que nos domina…”.
Atente-se no magnífico prefácio de João de Melo, que faz jus à obra deste escritor e alude, com sublime mestria, a toda a “existencialidade intrínseca do Homem”, presente em “O Pobre de Pedir”. Sentindo o fim a aproximar-se, o autor parece ter recorrido à ficção para se confrontar com a própria mortalidade, fazendo um balanço honesto (e sentido) à sua vida. “A ideia da morte parece ser, tanto nesta como noutras obras de Brandão, algo como a medida de todas as coisas da vida”; “O leitor deixa-se irmanar pela voz que clama, no seu deserto, esta alma exterior que nos manda viver, fugir do horror maldito da morte”, escreve João de Melo.
É uma obra singular por ter sido escrita com a consciência do fim próximo, e por nela pairar toda uma declaração testamentária, que começa com a chegada de um pobre à aldeia. A narrativa destaca um olhar puramente subjectivo e desencantado com o mundo e com os que rodeiam, e esta personagem não se apresenta por um nome, antes por uma existência. Há um fascínio ambíguo pela rebelião ou pelo olhar crítico no drama social da pobreza – efeito de uma certa simpatia que o autor parece ter sentido pelo anarquismo? – e, simultaneamente, uma reinvenção de espaços e seres, exaltando a ternura na altura das desiludidas esperanças do vazio período final da Primeira República. Há, igualmente, um pendor ético-social e uma interrogação permanente deste autor sobre o sentido de um mundo sem valores e em rápido processo de dessacralização.
Se, por um lado, o pobre de pedir é uma imagem aterradora pela sua impotência, a sua chegada é também sinal de uma catástrofe iminente, individual e comunitária. Sentimentos e situações humanas – como o autoconhecimento, o amor (e a sua falta), a sensualidade, a mentira, o casamento, a paternidade, o arrependimento, o medo, a velhice, a religião, a morte – são escalpelizados de forma intimista e introspectiva, ora na existência do pobre de pedir (em contraponto aos pobres da aldeia, que são todos, afinal), ora na linguagem em que o leitor descortina o íntimo do próprio autor. O capítulo V – O medo e a morte- mostra bem esses exasperados sentimentos: “Talvez todos façam as mesmas interrogações e sintam o mesmo medo. -Eu vivi ou não vivi? Eu vivi a verdadeira vida? Há-os que falam alto, e há-os que apertam cada vez mais a boca, e nem diante da morte deixam falar o seu fantasma”.
Mesmo que o olhar existencial sobre a sociedade tenha mudado radicalmente, e que esta estética possa parecer datada, o leitor entenderá perfeitamente o íntimo de quem se despede da vida. O autor prepara-se e encara o fim de frente. A última frase, não por acaso, é um reconhecimento disso, sem cedências e sem revolta: “Agora estou nu diante das estrelas”.