*Franklin Jorge
Fui educado por minha avó materna na escola do rigor e da exigência. A regra era: quanto mais difícil, melhor e mais digno de mérito.
Desde cedo, quase um infante, minha avó me delegou ler, página por página, sentença após sentença, a volumosa e entediante A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, justamente por ser entediante e volumosa; enfim, uma leitura sem dúvida imprópria para uma criança que precisava recorrer à consulta de outras fontes para descobrir não apenas a identidade de alguns personagens citados, mas também a topografia, as inferências geográficas e os fatos, aqui e ali, eventualmente citados e as inevitáveis lacunas.
Embora fosse dura a tarefa imposta, não esmoreci nem pedi arrego. E mergulhei no volume da Coleção Clássicos Jackson, em sua escrita escorreita e às vezes monótonas, exceto nos volumes destinados ao Teatro Clássico, que me empolgavam e me faziam sonhar em me tornar um dramaturgo. Cumpria-a como um dever a que não se pode postergar nem falhar. Dessa leitura, assim determinada, dependia minha minha honra e o privilégio de receber futuras tarefas dignas de minha probidade, entrevista por essa avó que, como a de Marcel Proust, tinha as peculiaridades dos nervosos. Alguém que nunca me disciplinou fisicamente, se não uma única vez, com uma chinelada, porque me recusava a engolir a gema inteira de um ovo caipira seguido de uma colher de mel de abelhas, que periodicamente nos prescrevia, não lembro mais para que. Levei pouco mais de um ano nessa leitura minuciosa que hoje me pareceria um tratamento digno para os insones.
Essa, minha primeira escola de disciplina. Diferente das demais, suponho, mas à altura de meu ainda precoce empenho de materializar e dar vida às tarefas que me eram confiadas. Na verdade, como alguns meninos, aspirava ser diferente da maioria que se apresenta na pedra do mercado. Esse livro representa, pois, para mim, mais que um livro, um processo de disciplina que me fez compreender que nada do que é grande é fácil. Uma forma de encarar desafios e supera-los, vencendo o tédio e fazendo-me ativo sem desejo de paga.
Por mais de um ano terá sido para mim uma espécie de pesadelo, mas também uma forma de vencer a inércia e a mim mesmo, fazendo sem reclamar o que não me apetecia, para cumprir a um tempo um rito e uma delegação.
Por isso sou grato a esse livro e à minha avó, que inventou essa fórmula mágica de superar minhas fraquezas e fazer-me mais forte do que eu era e sou.