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O Poder Moderador em tempos de Semi-Presidencialismo

Em participação em live promovida Por Altos Papos, Ex-Ministro foca numa questão que preocupa os brasileiros e ameaça a própria democracia interpretada por juízes supremos. Um verdadeiro curso para quem deseja ampliar seu conhecimento em política.

*Ricardo Velez

Nos últimos meses voltou a esquentar o tema do “Poder Moderador”, bem como o da adoção do “Semi-Presidencialismo” no Brasil. Sintetizarei, aqui, as considerações que fiz ao ensejo de Live promovida no dia 30 de novembro passado pelo grupo “Altos Papos” que coordena, em São Paulo, o amigo e editor Dr. Antônio Roberto Batista.

Nessa data, participamos do evento o professor dr. Carlos Estevão Martins, assessor parlamentar e docente da UnB, que dissertou sobre o “Poder Moderador e o Semi-Presidencialismo” do ângulo da ciência política. A minha exposição, que será resumida a seguir, abarcou os aspectos históricos do Poder Moderador.

Desenvolverei os seguintes itens: 1 – O tema do Poder Moderador na França e no Brasil imperial, segundo Antônio Paim (1927-2021). 2 – O Poder Moderador segundo Alfred Stepan (1936-2017). 3 – A ideia de Poder Moderador segundo Ives Gandra Martins (1935-). 4 – O Poder Moderador segundo Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961). 5 – O “Poder Moderador do Estado Tecnocrático,” no seio do “Conselho Nacional” pregado por Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) e o “autoritarismo instrumental” dos militares.

1 – O tema do Poder Moderador na França e no Brasil imperial, segundo Antônio Paim. – O arrazoado acerca da adoção do instituto do Poder Moderador pela elite imperial brasileira, ao longo do século XIX, foi belamente sintetizado, de forma completa, pelo mestre Antônio Paim, na sua obra intitulada: A discussão do Poder Moderador no Segundo Império [cf. Paim, 1994a]. Terei como pano de fundo, neste item, esse importante documento.

Jacques Necker (1732-1804), economista e político suíço, pai de Madame de Staël (1766-1817), era amigo do estadista e filósofo genebrino Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), amigo e ex-amante de Madame de Staël. Necker considerava que a instituição da Monarquia Constitucional, na Europa, era um fator de estabilidade, porquanto dava segurança às instituições, garantindo também a representação de interesses no Parlamento. Necker tentou, em vão, que o soberano francês, Luís XVI (1754-1793), desse o passo estratégico necessário para garantir estabilidade do Estado, aderindo ao parlamentarismo e à monarquia constitucional, à exemplo da Inglaterra. O indeciso monarca contentou-se, apenas, com a convocação dos Estados Gerais em Versailles. Dessa providência não emergiu a ordem esperada e houve, pelo contrário, um acirramento dos ânimos populares, por conta da propaganda maciça dos jacobinos, que combatiam radicalmente a Monarquia.

O banqueiro Necker – que ocupou o cargo de Ministro das Finanças de Luís XVI até às vésperas da Revolução Francesa – achava que esse ideal da estabilidade encontrava as suas origens na obra do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) o qual pensava, no terreno da política, num poder estabilizador das instituições, de forma semelhante a como, no Universo copernicano, havia uma força que tornava possível a vida sobre a terra, bem como o movimento ordeiro dos astros no Sistema Solar.

A Monadologia de Leibniz foi uma imaginosa teoria metafísica construída ao redor do ideal da unidade harmônica [cf. Leibniz, 1980]. O filósofo considerava que Deus, Ser perfeitíssimo, somente poderia agir de maneira perfeita. Ao criar o Universo, Deus fez, consequentemente, “o melhor dos mundos possíveis”, onde prevalecia o ideal da beleza e do equilíbrio. No plano da filosofia política, o pensador achava que o ideal seria uma monarquia absoluta como a de Luís XIV (1638-1715) na França, que fez do imperativo da estabilidade e da harmonia o centro das suas preocupações estratégicas e políticas, que se exprimiam esteticamente na ordem geométrica das construções e alamedas de Versailles. Nos jardins ornados de fontes, as águas pareciam pairar sobre a terra, conferindo ao movimento constante a sensação de estabilidade.

O Rei obrigou a nobreza a residir no magnífico Castelo, obedecendo a uma minuciosa liturgia de obrigações e atos de etiqueta que enalteciam o poder real, a fim de garantir um espetáculo continuado de disciplina e harmonia, longe das intrigas dos nobres nas províncias e da instabilidade do povo das ruas. A estética geométrica das aleias e avenidas somente era quebrada pelos movimentos harmoniosos e leves da dança do Rei Sol, no balé que Luís XIV inventou como êxtase de si próprio, ao ensejo do princípio estratégico que rezava: “L’État c’est moi”.

A Europa dos séculos XVII e XVIII, submetida a constantes revoluções ensejadas pela cupidez dos Monarcas, pela cobiça das classes sociais e pela insídia dos muçulmanos, precisava de um tempo de calmaria. Ora, seria o Rei Sol quem garantiria essa bela estabilidade. O Rei francês traria, com a sua determinação e a ordem incutida no Estado, um período de luzes e de harmonia no conturbado cenário europeu, com a França presidindo o espaço continental, graças a um esquema de poder balizado por uma poderosa e moderna máquina de guerra, la “Grande Armée”, na qual sobressaía a força arrasadora dos canhões móveis em cuja parte superior aparecia a frase mandada cunhar pelo soberano: “ultima ratio rerum” (a última explicação das coisas). A tronitruante e destrutora natureza da artilharia de campanha seria, para Luís XIV, a derradeira argumentação perante os seus enemigos. A França conquistou, assim, a supremacia continental. Ainda jaz por terra, na bela cidade de Heidelberg, a torre principal do castelo derrubada pela artilharia de campanha do soberano francês, como uma prova de que a Idade Média, com as suas muralhas e torres, já tinha acabado no século do Rei Sol.

Luís XIV morreu em 1715 e com a sua morte o ideal de estabilidade do Rei Sol foi eclipsado pela desordem das revoluções burguesas, que começaram a pipocar nos quatro cantos da Ilha Européia, sendo a mais sanguinolenta de todas elas a Revolução Francesa de 1789 [cf. Hazard, 1961]. O poder da Razão já não se encarnava mais na figura do Rei Sol, mas nas barulhentas revoluções surgidas à luz do Iluminismo. O momento napoleônico foi a tentativa de fazer ressurgir a ordem a partir da monarquia absoluta. Mas essa solução, que mudou os limites dos países da Europa ensejando uma nova monarquia saída do seio do povo, teve uma duração efêmera entre 1804 e 1815. A instabilidade da Revolução de 1789 foi substituída pela ordem do Sistema de Napoleão Bonaparte (1769-1821), que chamou a si a magna tarefa de reconstruir a estabilidade perdida, ao redor do novo direito civil que nascia à luz das ciências matemáticas, do mercado e do cálculo. Bonaparte foi o general da Revolução, chamando a si o dever de impor a unanimidade (pregada por Rousseau) ao redor do trono [cf. Rousseau, 1966].

Após a derrota de Napoleão em Waterloo (1815) os franceses tentaram dar vida nova à antiga monarquia. Mas a estabilidade do Ancien Régime encarnado na dinastia borbônica revelou-se fraca demais e terminou abrindo espaço para a Revolução Liberal de 1830 que guindou ao poder Luís Philippe, o “rei burguês” (1773-1850) que reinou entre 1830 e 1848. Nesse período consolidou-se a monarquia liberal, com o funcionamento regular do Parlamento. A obra de Benjamin Constant de Rebecque intitulada: Princípios de Política (1810) foi valorizada, justamente porque propunha o exercício do “poder neutro” (ou moderador) por parte do Monarca, mantendo em funcionamento o parlamento bicameral, com a representação dos interesses da burguesia, mas mantendo firmes as instituições sob vigilância do Trono, que exercia as funções moderadoras e garantia a estabilidade das instituições. Na obra mencionada, Constant reconhecia a existência de cinco poderes: real, executivo, legislativo, judiciário e neutro (quando o Rei fazia uso do poder de moderar para dissolver o Parlamento e convocar novas eleições) [cf. Constant, 1970].

François Guizot (1787-1874) foi o homem de Estado que se encarregou de sedimentar na França a Monarquia Constitucional, ao longo do reinado de Luís Filipe (entre 1830 e 1848). O autor que mais diretamente recebeu a influência de Guizot no Brasil foi Paulino Soares, visconde de Uruguai (1807-1866), uma das figuras de prol do Partido Conservador. Para ele, a elite imperial tinha uma missão fundamental: garantir a criação e o funcionamento de instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade e o progresso da sociedade, a exemplo dos regimes francês e britânico. O terreno onde se deveria travar essa luta era, para Paulino, o do direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser pensadas as instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que garantissem o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio de Direito Administrativo, publicado em 1862 [cf. Soares, 1960].

A respeito, escreve Themistocles Brandão Cavalcanti: “Ali se estudam os elementos fundamentais do Direito Administrativo e principalmente a estrutura do Estado e da administração, o problema da centralização, do Poder Moderador, da administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado. O conteúdo próprio das normas administrativas não estava ainda bem caracterizado e, por isso mesmo, não tinha a doutrina a merecida expansão. Afora, portanto, os elementos básicos de direito administrativo bem expostos no princípio da obra, o autor deu singular importância a duas instituições fundamentais da Política Constitucional do Império e que teriam influência preponderante no desenvolvimento do nosso direito administrativo e do nosso direito político – o Poder Moderador e o Conselho de Estado” [Cavalcanti, 1960: VII-VIII].

Eram claras as atribuições desse poder, segundo deixou consignado Benjamin Constant em Princípios de Política: “A monarquia constitucional nos oferece esse poder neutro, tão necessário para o exercício normal da liberdade. O rei, num país livre, é um ser à parte, superior à diversidade de opiniões, sem outro interesse que o da manutenção da ordem e da liberdade, sem poder jamais entrar na condição comum, inacessível, consequentemente, a todas as paixões, que tal condição faz nascer e a todas as que a perspectiva de voltar a ela alimenta no coração dos agentes, que estão investidos de uma potestade passageira” [Constant, 1970: 22].

Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) que acompanhou o soberano português dom João VI (1767-1826) quando da vinda da família real ao Brasil em 1808, recebeu a incumbência de elaborar os caminhos jurídicos que levariam à mudança da monarquia absoluta para a constitucional, com a finalidade de conferir estabilidade às novas instituições do Reino de Portugal, Brasil e Algarve, com sede no Rio de Janeiro. Segundo Pinheiro Ferreira, só haveria um caminho para a estabilidade almejada: a instauração, no Parlamento, da representação.

O jurista português elaborou, entre 1808 e 1834, detalhado modelo inspirado na doutrina de Benjamin Constant de Rebecque. O ponto central da interpretação de Pinheiro Ferreira dizia relação à diversidade de interesses a serem representados. O Parlamento deveria, em primeiro lugar, garantir a representação dos interesses mudáveis da sociedade, aqueles relacionados aos cidadãos; tais interesses, por refletirem as preferências da diversidade dos indivíduos, eram amalgamados ao redor de três núcleos: agricultura, comércio e serviço público. Mas, considerava Pinheiro Ferreira, somente essa representação não ensejaria a estabilidade das instituições. Seria necessário garantir a representação dos interesses permanentes da Nação, aqueles sem os quais se desfaria o pacto político. Tal ordem de interesses, sobranceiros às classes sociais, deveria ser representada pelo Poder Moderador, que interviria nos momentos de crise da representação, quando os representantes dos cidadãos, na Câmara Baixa, não chegassem a um acordo acerca dos rumos do Estado.

O Monarca seria o representante dos interesses permanentes da Nação e garantiria a solução dos impasses no Parlamento, mediante a dissolução da Câmara Baixa e o chamado a novas eleições. Nisso consistiria, basicamente, a função moderadora da Coroa. Pinheiro Ferreira deixou consignada a sua teoria da representação no ensaio intitulado: Manual do cidadão num governo representativo, publicado ulteriormente em Paris em 1834 [cf. Ferreira, 1998], o qual, nas suas versões preliminares, inspirou a Constituição Imperial de 1824.

A primeira convicção que tinha o visconde de Uruguai – como de resto os demais estadistas da sua época – era a de que a monarquia constitucional constituía o regime que melhor se adaptava às necessidades brasileiras. Essa convicção, é bem verdade, tinha sido sedimentada pela obra pioneira de Silvestre Pinheiro Ferreira. Mas o interessante é que Paulino encontrava no próprio Guizot um arrazoado claro e favorável à monarquia brasileira. Efetivamente, o pensador francês, na nona lição da sua Histoire de la Civilisation en Europe, tinha deixado claro que a monarquia foi, na Europa e notadamente na França, a primeira garantia de legalidade no início da modernidade, por cima da turbulenta atmosfera de particularismos em pugna.

Referindo-se especificamente ao Brasil, escrevia Guizot: “Abri a obra onde M. Benjamin Constant tem representado de forma tão engenhosa a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado por cima dos acidentes, das lutas da sociedade e somente intervindo nas grandes crises. Não é essa, por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas? É necessário que haja nessa idéia algo de muito especial que chame a atenção das pessoas, pois ela passou com extraordinária rapidez dos livros aos fatos. Um soberano fez dessa idéia, na constituição do Brasil, a base mesma do seu trono; a realeza é ali representada como um poder moderador, elevado por cima dos poderes ativos, como um espectador e um juiz das lutas políticas” [Guizot, 1864: 256].

Com a instituição do Poder Moderador o Brasil encontrou o caminho da estabilidade, no longo período que se estende da proclamação do Ato Adicional, em 1841, até o final do Império, em 1889. Esse foi o maior período de estabilidade política da nossa história. Estabilidade garantida, sem dúvida nenhuma, pela representação de interesses no Parlamento, mas, também, pelo exercício do Poder Moderador, que repousava na pessoa do Imperador e no funcionamento do Conselho de Estado e do Senado vitalício, à sombra do Soberano.

Com a queda da Monarquia em 1889 e a sua substituição pelo regime presidencialista, os mecanismos moderadores do Império desapareceram. Nas crises que passaram a se instalar entre os poderes públicos terminou se impondo o Executivo, mediante o expediente das chamadas “revoluções salvadoras”, quando os civis, não conseguindo governar, chamavam em apoio do Executivo as Forças Armadas, que, embora não tivessem nenhum poder de cunho político sobre as instituições republicanas, terminavam intervindo em apoio ao Executivo. Foi assim na República Velha. E foi assim, também, ao longo do período getuliano, desde a Revolução de 30 até o final do Estado Novo, em 1945 e no último período de Vargas como presidente, entre 1951 e 1954, culminando com o suicídio de Getúlio em 54, quando foi premido pelas Forças Armadas a abandonar o poder. Essas intervenções, embora não constitucionais, foram denominadas de “salvadoras”, porquanto conseguiam manter as aparências republicanas.

Dois exemplos de retórica política ficaram claros, no que tange à natureza extraconstitucional dessas intervenções: a famosa frase pronunciada pelo Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), ao ensejo da questão militar, no final do Império: “A honra do Exército está acima da Lei!” e a afirmação do capitão Juarez Távora (1898-1975), quando solicitou a Oliveira Vianna (1883-1951), estrategista do regime getuliano, que definisse qual seria o papel dos militares na República após a Revolução de 30. Como o sociólogo destacasse que, no seu modelo republicano, aos militares não era atribuído nenhum poder político, diante da insistência deste no sentido de que os militares definissem o seu papel, Juarez Távora respondeu: “Nós, militares, observamos a política como se fosse um banquete. Quando o banquete vira rega-bofe, entramos com a espada moralizadora”.

2 – O Poder Moderador segundo Alfred Stepan (1936-2017). – Este brasilianista elaborou uma concepção do Poder Moderador ao ensejo do ativismo militar pós-64, na sua obra intitulada: Os militares na política. Para Stepan, aos militares ainda caberia, no Brasil, o exercício de uma função moderadora, se bem que não definida constitucionalmente [cf. Stepan, 1975].

A proposta de Stepan não apresenta, no entanto, fundamentos novos no contexto das análises políticas e historiográficas do período. Fica, apenas, como uma “boutade” do mencionado teórico, que registra a ascensão dos militares após 64 e as suas ações modernizadoras do Estado e no seio da sociedade.

3 – A ideia de “poder moderador” segundo Ives Gandra Martins (1935-). – Nos dias atuais, o jurista Ives Gandra Martins defende uma função moderadora das Forças Armadas, na trilha da aplicação do dispositivo constitucional de defesa da Lei e da Ordem, podendo aquelas ser convocadas por algum dos poderes constituídos, para que intervenham, seguindo a legislação costumeira e sob o comando do Executivo, quando necessário for para manutenção da “Lei e da Ordem”.

Não se trataria, propriamente, do exercício de um Poder Moderador como no Império, mas apenas de um dispositivo legal para preservar a ordem em circunstâncias especiais.

4 – O “Poder Moderador” segundo Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961). – Quando Getúlio Vargas chegou ao poder nacional guindado pela Revolução de 30, o velho ditador gaúcho Borges de Medeiros foi devidamente enquadrado pelo Presidente, em benefício da Segunda Geração Castilhista. Borges tinha sido eleito cinco vezes como presidente do Rio Grande do Sul, em eleições sistematicamente fraudadas, que deram lugar à sanguinolenta revolta da sociedade sul-riograndense, que terminou com o Tratado de Paz de Pedras Altas, firmado entre os líderes insurgentes capitaneados por Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) e o governo estadual, com apoio das Forças Armadas, em 14 de dezembro de 1923.

As principais disposições do Tratado consistiam no fim das “reeleições” de Borges de Medeiros, fruto da manipulação dos votos por parte das autoridades estaduais, na garantia de que o presidente estadual poderia terminar o seu mandato, no compromisso de reforma da Constituição estadual para que se ajustasse, no que tange às eleições, aos dispositivos da Constituição Federal, na obrigatoriedade de o cargo de vice-presidente do Rio Grande (vice-governador) ser escolhido por votação e não por indicação do chefe do Executivo estadual e no reconhecimento da oposição legal dos liberais em face do governo gaúcho.

Não satisfeito com o papel secundário que a partir daí passaria a desempenhar no plano nacional, o velho ex-ditador gaúcho Borges de Medeiros escreveu, em 1933, no seu retiro obrigado de Pernambuco onde foi confinado por ordem de Getúlio Vargas, a obra intitulada: O Poder Moderador na República Presidencial [cf. Borges de Medeiros, 1933]. Tratava-se de um modelo de governança de inspiração liberal, porquanto nela o autor colocava a figura de um Presidente que governava através do Gabinete de Ministros por ele nomeados e que deviam prestar contas da sua gestão ao Legislativo unicameral, somente podendo assumir o Chefe do Executivo diretamente as funções de governo em tempos de crise (como em caso de guerra ou de grave comoção interna), exercendo as funções moderadoras quando houvesse desentendimento entre os poderes públicos, no seio de um modelo de Semi-Presidencialismo.

De qualquer forma, fica clara uma coisa: o velho ex-ditador castilhista em momento algum fez uma crítica ao seu ancestral autoritarismo praticado durante mais de quatro decênios. Não podemos esquecer que, depois de Castilhos, foi Borges quem deu continuidade ao regime de “ditadura científica” no Rio Grande do Sul, que produziu efeitos perversos nos terrenos político, econômico e cultural, com duas guerras civis que encheram de sangue os pampas e deram ensejo a um rigoroso estatismo, responsável pelo pouco desenvolvimento econômico do Estado sulino. Tendo vivido 97 anos e preservando a lucidez até o final da vida, jamais o ex-ditador castilhista deu provas de arrependimento pelos males causados.

Esse estranho modelo de Poder Moderador Presidencialista, proposto por Borges de Medeiros “sem precedentes em nosso direito positivo”, – como frisava o jurista gaúcho Paulo Brossard (1924-2015) – “parece inspirar-se no artigo 48 da Constituição de Weimar e lembra o discutido artigo 16 da Constituição da França” [Brossard, 1993: 80]. A respeito da herança deixada por Borges, escreveu Brossard: “Ao morrer, em 25 de abril de 1961, aos 97 anos, fazia um terço de século que deixara o governo do Rio Grande. Nesse período o mundo dera muitas voltas e coisas inacreditáveis tinham acontecido. Uma guerra mundial fizera outra devastação na humanidade. Milhões de homens pagaram com a vida o seu tributo, montanhas de ouro foram consumidas na luta, ditaduras fanáticas brutalizaram muitas nações; quase tudo foi desfeito e refeito mundo afora; contudo, as flores continuaram a florir na primavera; também os sentimentos de aversão, antipatia e até de ódio que envolviam o antigo chefe chimango, foram esmaecendo, em parte pelo tempo, que desfaz muita coisa, em parte pela própria conduta do ‘papa verde’ do Partido Republicano. Na missa de corpo presente oficiada pelo Cardeal Dom Vicente Scherer, na Catedral de Porto Alegre, pôde o celebrante dizer que Borges de Medeiros descera as escadas do palácio do governo, que exercera por longos anos, de mãos e bolsos vazios. A probidade talvez tenha sido o traço definitivo que a imaginação popular guardou de Antônio Augusto Borges de Medeiros” [Brossard, 1993: 80].

5 – O “Poder Moderador do Estado Tecnocrático,” no seio do “Conselho Nacional” pregado por Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) e o “autoritarismo instrumental” dos militares. – Getúlio Vargas, quando da sua passagem pelo Congresso Nacional como líder da bancada gaúcha na Câmara dos Deputados, entre 1923 e 1929, ao ensejo da leitura da obra de Oliveira Vianna, Populações meridionais do Brasil, cujo primeiro volume foi publicado em 1920, realizou uma sintomatologia dos Problemas Nacionais que afetavam ao Brasil no caminho do seu desenvolvimento. O principal problema, ao redor do qual giravam todos os outros, era o da perspectiva clânica adotada pelas lideranças políticas, ao longo da República Velha. Ora, segundo Oliveira Vianna, a principal exigência para sair do atoleiro da mesmice clânica consistia em fazer uma adequada sintomatologia da problemática brasileira.

O país-continente encontrava-se, segundo o sociólogo fluminense, esgarçado em uma miríade de grupos que somente olhavam para a sua perspectiva clânica ou familística. Dessa analise crítica não escapava o Rio Grande do Sul mergulhado no autoritarismo castilhista, mas sem uma perspectiva de modernização de cunho nacional. Tudo girava, no Rio Grande, ao redor dos interesses clânicos, habilmente manipulados por Antônio Augusto Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos (1860-1903) no comando do Estado sulino. Se o líder tinha escapado à “metafísica liberal” apelando para a razão no comando do Estado, era, no entanto, refém da perspectiva regionalista das “pequenas pátrias” comteanas, inserindo nesse contexto puramente regionalista a política sul-riograndense.

Ora, Oliveira Vianna trazia uma perspectiva de análise nacional dos problemas, superando definitivamente as particularidades regionais, mas é claro, tentando responder a elas numa perspectiva mais ampla do Brasil ao redor do Estado Nacional, estudado por Alberto Torres (1865-1917) e cultuado pelo seu discípulo, Oliveira Vianna.

Mas não se tratava de fazer uma sintomatologia ao redor dos interesses particulares. Oliveira Vianna, como Torres, pensava numa perspectiva eminentemente técnica, que olhasse para o Brasil como conjunto. Fazia-se herdeiro, assim, o sociólogo fluminense, da amplitude de visão de um estadista conservador como o Visconde de Uruguai, Paulino José Soares (1807-1866). A solução do problema do atraso e da desintegração deveria ser vista à luz de uma perspectiva técnica e administrativa do Estado, não apenas jurídica. Mas, sobretudo, era necessário superar de vez a estreita perspectiva liberal clássica, da defesa de interesses particulares como arena da luta política. Inseria-se Oliveira Vianna, assim, no contexto técnico que tinha algo do despotismo ilustrado pombalino, ao centrar a atenção no equacionamento, pelo Estado, dos problemas do Brasil, por cima dos particularismos locais, com vistas a uma conquista futura da liberdade civil. O seu ponto de vista era sobre a totalidade contemplada do ângulo dos requisitos administrativos, estratégicos e técnicos da gestão do Estado Nacional.

Oliveira Vianna, que tinha se convertido no estrategista de Getúlio Vargas a partir de Revolução de 30, partiu para pensar o Estado como entidade técnica que daria solução aos problemas nacionais. E, à maneira do criador de tal modelo de Estado modernizador e legiferante, Napoleão Bonaparte (1769-1821), destacava que era necessário assinalar os elementos técnicos, administrativos e estratégicos que deveriam ser postos em funcionamento.

O primeiro instrumento de que carecia o Chefe do Estado era o da existência de um Conselho Técnico, a partir do qual ele pudesse analisar com abrangência os principais problemas brasileiros. Oliveira Vianna postulava, portanto, a criação de um Conselho Nacional, uma espécie de “Poder Moderador”, integrado por 15 a 21 membros “escolhidos entre as mais altas personalidades do país”, os quais seriam escolhidos por uma comissão da Câmara dos Deputados. Os ex-presidentes da República seriam membros natos do Conselho Nacional. Os titulares do Conselho deveriam ser nomeados pelos membros do Tribunal de Contas e do Supremo Tribunal Federal.

O Senado Federal deveria ser abolido e as suas atribuições passariam a ser incumbência do Conselho Nacional. Deveria ser proibida a reeleição de todos aqueles que exercessem mandato popular. Deveria, outrossim, ser vedado o exercício simultâneo de cargos eletivos e de nomeação. A Justiça deveria ser considerada como uma força pedagógica, cuja função seria eminentemente nacional. Em decorrência disso, seria necessário implantar a unificação e a federalização da magistratura e da processualística e deveria se dispor que os magistrados de têrmos ou comarcas servissem por prazo fixado em lei, “findo o qual deveriam ser removidos para outros têrmos ou comarcas”. Deveriam ser formados, também, tribunais regionais.

Nas administrações federal, estadual e municipal deveria existir a função de Conselhos Técnicos como órgãos de consulta obrigatória, “para melhor atender aos interesses de classe”. O funcionalismo público, de outro lado, precisaria “ser arrancado das injustiças do favoritismo e das injunções políticas, para o qual (deveria) ser elaborado um Estatuto que lhe (regulamentasse as) atividades, os direitos e as obrigações”. Deveria ser criada “uma polícia de carreira, livre do partidarismo local”. O sistema eleitoral deveria ser regulado e fiscalizado autonomamente “pela magistratura togada”. A legislação eleitoral, de outro lado, deveria ser “única e de caráter federal”. O ensino superior seria “oficializado em todo o país pela União e seus professores” (à maneira napoleônica) seriam “remunerados pelo Tesouro Nacional”. No que tange às questões sociais, “tudo se fará por uma legislação social que ampare o operário, urbano e rural, de maneira a assegurar-lhe justo salário e condições satisfatórias de higiene, bem-estar e segurança”. No terreno econômico, Oliveira Vianna considerava que “não há como ser contrário ao capital estrangeiro”, sendo necessário, somente, “estatuir um sistema fiscal que evite a evasão, para fora de nossas fronteiras, dos lucros levantados”. Por último a imigração deveria ser posta “sob o controle científico do Estado, como complemento humano do trabalho nacional” [Torres, 1956: 102; 181-184]. O perfil ideológico de tal projeto era o de uma moderna social-democracia, expurgada a representação política, no entanto, dos interesses individuais ou clânicos e com uma dose de autoritarismo nos procedimentos administrativos, a fim de garantir a implantação de uma democracia duradoura. O papel dos órgãos colegiados como a Câmara dos Deputados seria mais de caráter técnico.

Aparecia, portanto, no pensamento de Oliveira Vianna, a figura procedimental do “autoritarismo instrumental”. Na construção da integração nacional, as liberdades individuais deveriam ser postas em função do projeto maior de um desenvolvimento harmonioso do conjunto do país. Somente assim, pensava o sociólogo fluminense, seria possível garantir o exercício de liberdades que realmente funcionassem, por fora da secular tendência à manipulação clânica dos direitos dos cidadãos.

Descartado o Poder Legislativo (viciado pelo compadrio e as políticas de campanário puramente locais), Oliveira Vianna terminava reconhecendo que do trabalho conjunto dos outros dois poderes públicos, o Executivo e o Judiciário, surgiriam as condições de liberdade civil que permitiriam, no futuro, pensar na conquista plena das liberdades políticas dos cidadãos. Oliveira Vianna não identificou, contudo, qual seria a via par solucionar eventuais conflitos entre esses dois poderes.

Esse “autoritarismo instrumental”, no sentir de Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019) empolgou boa parcela da elite política brasileira, ao longo do período que se estende do governo de Getúlio Vargas no seu último período (1951-1954), até chegar ao intervencionismo social estatizante de João Goulart (1919-1976), desaguando nos governos militares, entre 64 e 85, com a ideologia econômica liberal e o autoritarismo político que caracterizaram esse período [cf. Silva, Golbery do Couto e, 1981: 3-37; Santos, 1978b].

Conclusão. – Lembrando o princípio expresso por Comte (1798-1857) de que “a História se repete como farsa”, não são de surpreender, hoje, os arroubos pretensamente liberais do STF querendo encarnar, novamente, nestes tormentosos tempos, um vaporoso “poder moderador” para garantir, pela via do autoritarismo instrumental que manda prender jornalistas e bloggers, legiferando despudoradamente sobre minúcias da vida cidadã, com a finalidade de “preservar a liberdade e a democracia”.

Muito mais autêntica foi, nesse cenário de autoritarismo instrumental, o imperativo categórico com que o último general-presidente, João Batista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), pôs em marcha o processo de abertura: “Juro fazer deste país uma democracia e prendo e arrebento quem se opuser”.