*Miguel Ángel Hernández
Em grande parte dos romances mencionados neste texto, a arte não aparece como um elemento trancado no museu ou na galeria para satisfazer a curiosidade cultural, mas sim acontece na vida dos personagens e afeta sua realidade. Há um antes e um depois do contato com a obra. A arte penetra no espaço cotidiano, toca-o, sacode-o e altera-o. A arte transforma a vida. Poderíamos dizer que, de certa forma, faz sentido, atua, excita, move…, “funciona”. E uma das chaves para esta “função” é que os escritores se colocam no espaço do espectador e descrevem a experiência estética. É o que acontece, por exemplo, em 10:04 (2014), de Ben Lerner; Ponto Ômega (2010), de Don DeLillo; ou Kassel não convida a lógica (2014), de Vila-Matas. A personagem está diante da imagem, observando-a, vivenciando-a, e não apenas analisando seu discurso crítico, mas deixando-se levar pelo que a obra sugere. A obra contemplada não está desligada da história, mas ocupa um lugar na sucessão do antes e do depois. O personagem entra no museu com seu mundo de vida e, após a observação, a obra viaja com ele. Não há desconexão de espaços ou tempos, mas sim uma sobreposição. A arte é mais um elemento do fluxo da história, mais uma parte da vida. A sua capacidade de agir advém, justamente, da sua ligação com os momentos da experiência de vida.
Esta posição ao lado do espectador através da busca de vínculos com o mundo da vida é uma das diferenças mais palpáveis entre a escrita do romance e a escrita crítica. E a questão é que quando abordamos as obras de arte como críticos de arte, tendemos a perder a relação com a experiência, com o que trazemos conosco e com o que levamos conosco depois. Observamos as obras como um todo fechado situado num lugar fora do mundo e analisamo-las decompondo-as, como se estivessem numa mesa de autópsia. Quando lemos um texto de crítica de arte, encontramos a obra aberta num canal, decomposta, analisada, mas desativada. O texto o desativa assim como a instituição faz. O romance – a narração da história e da experiência – e as formas não analíticas de escrita, por outro lado, confrontam a arte no seu terreno, que não é outro senão o da experiência do espectador. Uma experiência que, como críticos de arte, muitas vezes deixamos de lado, utilizando a escrita quase como uma espécie de armadura para nos protegermos das obras. E esse descontentamento crítico – além de negar a subjetividade do escritor – muitas vezes acaba por negar o poder transformador da arte. Os textos aparecem como discursos racionais, embora nada do que dizemos seja incorporado à experiência estética.
Depois de vários anos saltando entre a narrativa e a crítica de arte, pude confirmar esta diferença fundamental na compreensão do alcance da obra de arte. Quando escrevo ficção e uso arte para contar histórias, quando a arte é o que me rodeia – o que rodeia a personagem fictícia – e não o que está pendurado numa parede, isolado do mundo, sinto que funciona. Quando me dedico a ele como crítico de arte e sou eu quem está ao seu redor, sinto que o desativo. Num caso, deixei que a arte afetasse a experiência – real ou ficcional; no outro, inconscientemente – porque a “disciplina” do texto o condiciona – coloco-me fora do campo. É como se, diante das obras, eu tivesse duas opções: estar fora, buscando o distanciamento crítico, ou dentro, nadando na experiência. Ambas as posições são necessárias. E o que eu gostaria – o que tento – é encontrar um ponto de proximidade-distância, um estar fora e ao mesmo tempo dentro, uma forma de escrita capaz de abordar o fenômeno artístico sem perder o sentido último de que a arte está prestes a se transformar em vida.
É claro que não estou defendendo aqui o abandono da crítica de arte; Cada disciplina tem seu contexto de atuação. Mas estou interessado em salientar que existe um aspecto essencial da arte – a experiência afetiva – que está presente no romance e que escapa à crítica de arte. E que os críticos de arte podem – nós podemos – aprender algo com os escritores sobre a forma como a arte se desenvolve e atua nos seus escritos: fazer com que a arte funcione como funciona nos romances, que muitas vezes se tornam laboratórios, o sentido oferecido por Laddaga, onde é possível imagine “como a arte funcionaria se realmente funcionasse”. Porque – e que meus colegas de profissão me perdoem; críticos, digo – tenho a impressão de que os escritores são os únicos que realmente levam a sério o poder da arte. E nas suas criações desdobram-no e colocam-no em jogo, transformando os textos em museus sem paredes onde a arte e a vida se conectam.
Miguel Ángel Hernández