*Simão Sussa
Os bons autores da cidade que me perdoem, mas foi em um cordel que encontrei a expressão mais profunda da alma não só natalense, mas da alma do próprio cordel e daqueles que ele representa. Manoel é o seu autor. Poeta da passarela, muitos passam e poucos notam: como as demais personagens costumeiras, no mais das vezes tenta-se evitar a sua presença. Não obstante, ele permanece lá, sempre que pode, com sua bolsa e seus cordéis, com a tenacidade dos repentistas que vagavam de cidade em cidade para espalhar as novas e ganhar os tostões para sobreviver – agora, na nossa versão mais sedentária.
Seus cordéis são todos um depoimento da sua passagem por este mundo fugaz, mas um deles, que li ao acaso, é tão destoante do que mais li em torno que até hoje me surpreendo. Estava em um circular do campus, lendo sem grande expectativa, mas com respeito à figura do cordelista, quando notei o ponto particular que distingue A Princesa Gustavine na Fonte Misteriosa. Não era um cordel comum. Estava sentado, segurando a mochila de um outro aluno, e rapidamente me ajustei no assento e li mais atentamente. Li, e me segurei para conter as lágrimas. É verdade que temos o nosso Horto das Oliveiras, o depoimento da aceitação diante da morte de Auta de Souza, mas o seu metro burguês, sua expressão comedida, tira um pouco da verve popular e pujante dos versos de Manoel. Lemos, Auta sabendo o que esperar, e recebemos o que esperamos; Manuel, não.
Com respeito a Manoel, acredito que seus versos foram espontâneos, inesperados. Ele próprio talvez não os tenha plenamente percebido, mas eis que, mesmo assim, lá estão. O cordel é composto em duas partes com uma mesma temática geral, mas mortalmente distintos: A Princesa Gustavine na Fonte Misteriosa e Meu Reinado Além. Na primeira vemos uma aventura encantada do mundo do cordel, que remonta às imagens de pelejas e batalhas, dragões, bruxas e espadas, reinos, príncipes e princesas. A aventura de dois jovens em busca de resgatar princesas e terem o seu “e foram felizes para sempre”.
A narrativa se passa em torno de um reino com uma fonte mágica. E até aí nada de esquisito em relação ao cordel, sobretudo à tradição cordelística, repleta de fantasia à la armoriais. Mas acontece que na segunda parte da narrativa há uma quebra total de expectativa. Na verdade, é como uma nova história: um personagem – o eu-lírico? – aparece lavando a alma. Quem quiser dar unidade à narrativa que veja nessa água onde ele lavou a alma a água misteriosa desse reino encantado. Nessa hora em diante os seus versos seguintes são a coisa de mais pungente que já vi até hoje. É uma descrição crua e belíssima de uma alma nua diante de uma superfície espelhada. O que ela vê nessa água não é sua própria imagem que, apaixonando-a, a puxa para baixo; mas é a transfiguração, quiçá uma interpretação da própria fantasia cordelística, transmudada na esperança religiosa mais profunda: a salvação eterna.
“Ali, foi igual um sonho
Eu me senti transformado,
Parece que o céu abriu
O manto lindo azulado,
Meu corpo velho sofrido
Parecia renovado.”
Não é mais a simples narrativa anterior que está se desenrolando. É a própria alma do eu-lírico, de Manoel, do cordelista, do próprio cordel, que se revela por trás e para além da narrativa fantástica. Quem ler os outros cordéis deste poeta e conhecer-lhe um pouco mais a vida verá ainda mais mensagem, ainda mais profundidade, ainda mais poder nas suas palavras: palavras vindas do nosso povo, e que expressam na sua simplicidade a cada um de nós.
Que diferença do arroubo arrogante do seu compadre, Manuel, o de Azevedo que, ao compor sua Batávica Epopeia, com enorme grandiloquência evoca Homero, Camões, Dante, após Fabião das Queimadas e José Saldanha, propondo-se a ser um novo Villa-Lobos e concertar erudito e popular, universal e local, espiritual e guerreiro, tempo e espaço, engenho e arte, enfim, para logo em seguida compor uma história sem sal transposta em versos populares. Insosso e insípido. Bandeira bem sabia que versos de guerra só podem ser feitos por homens de guerra, não por poetas professores, nem por historiadores dublês da poesia.
Por outro lado, é a mesma sinceridade ardente que transparece nesses versos, e deles se exaure a sua força. Se é verdade que a arte é a expressão de impressões, como diria Benedetto Croce, e, complementando em nossos tempos, que não é apenas a expressão de sentimentalismos baratos, mas de experiências profundas, como diria um Todorov arrependido, então é neste livreto, um cordel tão simples, que, à parte qualquer minúcia, representa a nossa gente.
Se o tempo tentar engolir esses esforços, que ele esteja seguro de que ao menos não terá passado despercebido dos olhos que viram a emoção transmudada em lágrimas. Que a aposta desta vida, revelada no espelho da fonte misteriosa, possa ter valido a pena para uma alma tão grande quanto a do nosso poeta da passarela.