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O precioso Villaça

Fundador de Navegos lembra seu amigo e mestre, Antônio Carlos Villaça [1928 -2005], autor de O Nariz do Morto e Literatura e vida.

*Franklin Jorge

A Academia Brasileira de Letras ratifica a crença popular acerca do paradoxo da justiça que “tarda, mas não falha”, atribuindo o “Prêmio Machado de Assis” – máximo galardão acadêmico – ao conjunto da obra de Antonio Carlos Villaça.

Escritor, como uma forma superior de vida, assim como o monarquismo e o sacerdócio, Villaça condensa experiências e idéias em sentenças aforísticas, algo lispectorianas, pensadas em profundo silêncio e escritas com sofreguidão e gulodice abissais.

Numa prosa arfante e elíptica, personalíssima, atua Villaça, iludindo-nos com a magia da literatura. Uma literatura villaciana, não-conformista, serena e desesperada; contemplativa e observadora, plena de pausas gramaticais e deliberada pontuação excessiva que dir-se-ia, por sua abruptidão, arfante, dispnéica, capaz de induzir o leitor a suspender a leitura e cismar numa longa e absorvente ruminação.

Villaça dignifica o gênero memorialístico, elevando-o a uma culminância que aureola semanticamente essa obra elaborada, requintadíssima, exprimindo temperamento e cultura. Seus recursos estilísticos proporcionam, a partir do isolamento de vocábulos, um valor em si. Não admira que sua prosa seja considerada poética.

Malgrado não ter a rigor uma “biografia” – peripécias, aventuras, envolvimento com fatos históricos etc – Villaça consegue extrair do seu olhar arguto e analítico sobre a passagem e os homens, a essencialidade mesma da condição humana. Representante de uma estirpe de escritores embebidos em humanismo, banhado em angústia e poesia moderna, mantém-se jovial, guardando e velando o menino buliçoso e inquieto que continua existindo nele.

Recordo-o em dois momentos de sua vida, no Rio de Janeiro e em Natal, ambos marcados por uma emoção viva. Em 1979, passeando por nossas ruas, no usufruto do seu cristianismo hedônico; entontecido nessa luz sobrenatural que distingue a cidade oceânica com uma invisível redoma. Natal, pois, o seduziu e encantou.

Aqui, tendo visitado Cascudo em seu chalé, numa das tardes mais intensas da sua vida, impressionou-se com a fidelidade do autor de “Prelúdio e fuga do real” à terra natal. Foi quando interrogou o mestre sobre Bibi, a babá inesquecível, a ama longínqua, ali presentíssima. Cascudo fumava alegremente o seu charuto. E perturbou-se com a pergunta a respeito da sua ama, a mais poderosa presença da sua vida, toda vivida aqui, por toda a cidade, no meio do povo, como um “provinciano incurável”.

Villaça não sabia que naquele dia transcorria as “Bodas de Ouro” do seu anfitrião quando Dona Dahlia, “gentilíssima”, o recebeu no alto da escada e em seguida o introduziu no museu cascudiano. Surdo e quase cego, Cascudo respondeu à sua curiosidade com uma fluência calorosa.

“Mas devo tanto a essa mulher”, confessou num rompante. Tudo o que sabia, veio dela, Bibi, sua grande fonte inesgotável. E Villaça se lembra que Cascudo se pôs a falar dela, a evocar a ama perdida no tempo. Em seu solilóquio, diante de uns olhos vivazes, vibrava no menino de súbito despertado para o mundo, ouvindo os contos de Bibi. Havia tanta vida nele – recorda Villaça. – Tanto élan, tanto frêmito…

No ano seguinte, após o almoço numa taberna portuguesa, Villaça quis levar-me em visita à casa apalacetada da sua avó Antônia, magistralmente retratada em “O nariz do morto” (Editora Rocco, 1975). De São Cristóvão ao Cosme Velho, possuído daquela alegria do menino que passeia, desvelou-me a alma mesma do Rio. A rua faz-lhe bem, a multidão o alegra. Cada bairro, cada rua, cada praça, cada casa tinham a sua história individualizadora e um nome que as distinguiam.

Ali, naquela casa, apontava Villaça, teria vivido Nelson Rodrigues, o moralista truculento; em Santa Teresa, naquele miradouro de onde se descortina a cidade com a baía da Guanabara ao fundo, Adelino Magalhães, grande escritor esquecido; agora passávamos pelo Flamengo, diante do edifício onde morava o nosso amigo Walmir Ayala… Em Laranjeiras, a casa do reacionaríssimo Gustavo Corção e, no Cosme Velho, a casa onde morou Cecília, Machado de Assis, o artista Augusto Rodrigues…

De repente, diante da carcaça de uma casa em avançado processo de demolição, portas e vitrais já enfileirados ao longo do muro, mandou parar o táxi. Sem que me dissesse nada, percebi que estávamos diante da casa da infância e da mocidade de Antoninha, sua avó Antônia, de quem, por gratidão de seus pais, herdaria a versão masculina do nome. Villaça estava visivelmente emocionado e deve ter-se lembrado que essa avó, tão presente em sua memória, ao vê-lo roxo e nu sobre a bancada de mármore, recém-nascido e dado como morto, em seu desespero pôs-se a sacudi-lo com tanta paixão que o trouxe de volta à vida.

Villaça lançou um último olhar sobre a casa – esse olhar contemplativo, alongado e comunicante que conhecemos – e viu as suas tias-avós, as meninas Chiquinha, Cotinha, Jujú e Helena… Em que pensaria, naquele momento, diante daqueles escombros? Ter-se-ia lembrado que Cotinha, afilhada de Machado de Assis, levara certa vez um beliscão do autor de “D. Casmurro”, porque não conseguira recitar corretamente uns versos que ele escrevera especialmente para uma festa em família? Onde estaria, agora, toda essa gente do seu sangue? A casa, afinal, era por aqui…

[2003]