*Alexsandro Alves
Anton Bruckner (1824-1896) é um caso único entre os compositores e entre os artistas em geral. Convenhamos que a obra de arte seja o espelho do artista, qual Narciso no lago a vislumbrar-se, a obra desse mestre é confusa, para afirmar o mínimo. Será que nunca se enamorou de si? E tão, como artista, é um caso único.
Vamos lá. Talvez sofresse de alguma patologia. Ou algum desequilíbrio emocional. De fato, sua falta de confiança e de segurança em si mesmo eram doentios. O problema se mostra em suas sinfonias, são delas que provém a expressão “o problema Bruckner”.
O campesino e desajeitado Bruckner nasceu em uma cidadezinha de apenas 1500 habitantes, uma idílica aldeia nos alpes austríacos. Modesto, na vida teve apenas uma única mulher, sua mãe. Que, conforme costume da época, guardou afetuosamente uma foto da mãe morta, que conservou em sua sala, em frente ao piano. Lá estava ela, de olhos fechados e vestido negro, com as mãos cruzadas, abençoando a arte de seu filho indeciso, momentos antes de entrar no féretro.
Bruckner compôs sua primeira sinfonia em 1866, e aqui inicia o problema. O problema Bruckner é o resultado da timidez, falta de confiança e de segurança do artista em si mesmo: Bruckner faria sucessivas revisões nessa obra, de forma que, ainda em 1891, poucos anos antes de sua morte, ainda estava revisando a mesma. O mesmo aconteceu com todas as suas sinfonias. A segunda, terminada em 1872, foi revisada em 1873, 1876, 1877 e em 1892, detalhe, essas duas sinfonias já contavam com edições publicadas e estreadas.
Quem mais sofreu com esse desassossego de Bruckner foram suas Terceira e Quarta sinfonias. A Terceira, composta em 1873, tem cinco versões! Bruckner a dedicou a Wagner e essa foi a obra mais constrangedora e traumática para o modesto campesino. Bruckner espalhou, por toda a partitura, citações de obras de Wagner e dedicou ao Mestre a obra. A estreia ocorreu em Viena, com Bruckner na regência. Quando terminou o concerto, que Bruckner virou-se para o auditório, não havia ninguém. Todos saíram, aos poucos. E quando Bruckner virou-se novamente para a orquestra, os músicos já estavam de saída, sem nem um mínimo adeus. Até o final da vida ele revisaria essa obra. Retirando as citações de Wagner, encurtando trechos, alongado outros. Para se ter uma ideia do desequilíbrio do compositor, na última versão da sinfonia, ele restaura várias citações wagnerianas que haviam sido retiradas na segunda versão. Hoje, as versões mais gravadas são a segunda e a quinta.
A Quarta é ultrajante. Há duas sinfonias diferentes agora. A primeira, de 1874, é pouco executada. A segunda, de 1878 é a que é tocada hoje. O que acontece aqui é que os dois movimentos finais da versão de 1878 são outros. Não é uma versão diferente, como nas outras sinfonias. Simplesmente Bruckner rasga os movimentos terceiro e quarto da de 1874, e escreve novos movimentos para a versão de 1878, mas não é uma outra sinfonia (ou é?), pois os movimentos iniciais são os mesmos em ambas. Imaginemos um romancista que escreve seu romance e, indeciso quanto ao final, resolve escrever capítulos finais diferentes e publica as duas versões!
A partir da Quinta, as revisões se tornariam não tão frequentes. Mas ocorreriam. No entanto, não podemos falar de novas versões, à maneira das anteriores. São pequenas revisões. De fato, a Quinta, a Sexta e a Sétima, juntamente com a Nona, representam Bruckner mais confiante. Se bem que a Nona foi deixada incompleta pela morte do compositor, dos quatro movimentos tradicionais de uma sinfonia, ele completou os três primeiros, morrendo quando orquestrava o quarto. Como a Nona foi dedicada a Deus, Bruckner escreveu assim na folha de rosto da edição: “dedicada ao bom Deus” costuma-se afirmar que “apenas Deus conhece seu final”.
A Oitava tem uma versão revisada, que continua sendo a mais executada até hoje.
Como o problema ocorria? Amigos do compositor. Não sabemos até que ponto a influência dos amigos foi decisiva, mas conhecemos relatos das insistências de vários deles para que Bruckner modificasse essa ou aquela passagem nas sinfonias. Um exemplo é a Oitava, terminada em 1887. A versão que estreou em 1890, com modificações feitas nos ensaios em decorrência das insistências de Hermann Levi e Franz Schalk, hoje é contestada. Levi insistia que a sinfonia era confusa e Schalk tornou ainda mais wagneriana a obra. Hoje, tanto a versão de 1887, a original, quanto a versão revisada de 1890, são performadas.
Por muito tempo Bruckner sofreu com o desdém da crítica. Hoje, sua música, sobretudo suas sinfonias, são tidas como a continuidade da grande tradição sinfônica germânica. Mas o problema permanece, em todas as gravações está sempre especificada qual versão se escuta.