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O Requiem, KV 626, de Mozart, parte 2 de 2

Frederico Toscano, especialista em Mozart, nos leva em uma odisseia em direção às mais recentes descobertas sobre um mistério na vida de Mozart: a composição de sua última obra, que deixou incompleta… será que deixou mesmo?

*Frederico Toscano

[email protected]

 

A parte um aqui.

 

O Requiem começa com a idéia melódica central no fagote. Tal linha tem uma melodia coral que também foi usada pelo compositor alemão Georg Friedrich Händel (1685-1759) em The ways of Zion do mourn (HWV 264), hino fúnebre dedicado à rainha Caroline von Brandenburg-Ansbach (1683-1737), esposa do rei Jorge II (1683-1760) da Inglaterra (áudio abaixo)

 

 

– com textura orquestral muito semelhante ao Introitus de Mozart.  A obra de Händel, uma das mais refinadas de sua autoria segundo o historiador e primeiro biógrafo do compositor Charles Burney (1726-1814), foi primeiro apresentada no funeral da rainha na Abadia de Westminster em 17 de dezembro de 1737, sendo reutilizada com revisões na abertura da seção inicial do oratório Israel in Egypt (HWV 54) em 1739, cujo libreto se baseia nos livros bíblicos do Êxodo e dos Salmos. O uso desse material antigo por Mozart cinco décadas depois preserva o significado implícito desse texto fúnebre enquanto o moderniza no estilo orquestral vienense, exaustivamente estudado pelo professor Daniel Heartz (University of California, Berkeley).

Mozart acrescentou um solo de soprano (Te decet hymnus) usando algo do canto gregoriano que havia sido utilizado como melodia do compositor austríaco Johann Michael Haydn (1737-1806) – irmão do célebre Franz Joseph Haydn (1732-1809), um dos pilares do classicismo musical – em sua magnífica Missa pro defuncto Archiepiscopo Sigismondo (MH 155), dedicada ao conde Sigismund von Schrattenbach (1698-1771), arcebispo e governante de Salzburgo (Áustria), que o próprio Mozart havia cantado em sua juventude, quando a obra foi executada na catedral da cidade em dezembro de 1771, durante a cerimônia fúnebre. Leopold and seu filho Wolfgang estiveram presentes em outras apresentações do Requiem de Michael Haydn em janeiro de 1772, o que mostra como a obra foi admirada. No entanto, ao invés de torná-lo uma mera melodia sobre um simples acompanhamento, Mozart acrescentou a linha de canto com todos os motivos precedentes do Introitus.

Mozart se inspirou em outra obra de Händel para o seu Kyrie: o Dettingen Anthem, HWV 265. Aqui o mestre austríaco exibe claramente o seu gênio contrapontístico ao trabalhar com uma rigorosa fuga coral. Para contornar a sensação arcaica desse movimento, Mozart, ao invés de cadenciar em acorde completo, cadencia num acorde neutro – acorde sem terça: somente fundamental e quinta (a terça de um acorde determina se o acorde será maior ou menor; Mozart, ao deixar um acorde sem a terça, causa uma ambiguidade, pois não há como se saber o modo no qual o acorde se encontra).

Mozart começou a trabalhar inicialmente sobre o Dies irae, por ser esse texto (especialmente dramático) o núcleo de qualquer réquiem (uma tradição austríaca, possivelmente iniciada por Michael Haydn), dividindo as vinte estrofes do texto latino do Dies irae (chamado Sequenz) em seis seções musicais para que se pudesse variar as texturas, forças musicais e características de estilo – ao definir os diferentes cenários/imagens do texto. O movimento de abertura usa todas as forças disponíveis, remetendo-se ao estilo sinfônico. Duas seções com temas contrastantes são interligadas por cordas ligeiras e faíscas de sopro que inflamam um motivo cromático e fortemente marcado em Quantus tremor est futurus.

O próximo movimento, Tuba mirum, usa um trombone cantabile e o baixo solista para espalhar o assombroso som do Juízo Final. A melodia do baixo solo busca a sonoridade de uma trompa natural para acompanhar o canto do trombone. Este “desperta” mais três cantores que fazem, cada um, uma declaração e, em seguida, envolvem-se num discurso iluminado. O Rex tremendae faz uso de recursos do barroco francês com seu ritmo duplamente pontuado e alternância de registro e dinâmicas.

Para a elegante fuga do tipo Empfindsamer Stil (ou “estilo sensível”,  técnica de composição desenvolvida na Alemanha do Séc. XVIII com o objetivo de expressar “sentimentos verdadeiros e naturais”, bem como mudanças repentinas de humor) no Recordare, Mozart se inspirou na Sinfonia em Ré menor (vídeo abaixo) de Wilhelm Friedemann Bach (1710-1784), filho primogênito e predileto de Johann Sebastian Bach (1685-1750), aplicando com sucesso essa textura galant (com cadências de dança) numa peça vocal dentro de um memorial fúnebre.

 

 

Mozart parafraseou sua própria Sinfonia nº 25 (KV 183) no Confutatis, usando o tema final para o coro masculino e instrumentos de sopro sobre uma figura furiosa (roulade) nas cordas, contrastando com o coro feminino que canta com uma suave melodia dos violinos. O coro e orquestra se reúnem em um dos esforços harmônicos mais complexos do Séc. XVIII, passando por sete pontos-chave antes de chegar à parte final da Sequenz, o Lacrimosa. Oficialmente, Mozart teria trabalhado no Lacrimosa no dia em que morreu, e as figuras das cordas foram descritas como clamor em lágrimas.

O Domine Jesu Christe é o recanto barroco, a pérola diferenciada do Requiem. Começa como um coro alemão concertato, observando o contraste dinâmico (o que o musicólogo e regente Nikolaus Harnoncourt chama de “chiaro-oscuro”) e o contraste entre os registros (agudo/grave) e de forças musicais. Certas seções ainda oferecem uma fuga coral (Ne absorbeat) e, em seguida, o tema original numa fuga para solistas (Sed signifer), seguido de outra fuga (Quam olim Abrahae). Mozart cria sujeitos e contra-sujeitos, enquanto mantém uma perfeita fantasia coral barroca. Este movimento se vincula ao Hostias, um minueto completo com ritornelli, como o utilizado nas cortes, inclusive usando a hemíola nas cadências das danças.

O Sanctus é a única parte verdadeiramente alegre de um réquiem. Mozart escreveu o seu Sanctus decorativamente elegante e sinfônico, enquanto usa técnicas modernas, como a dinâmica gradual. É seguido por uma única fuga no Hosanna; Mozart utiliza o contraponto invertido junto ao acúmulo (romântico) de sujeitos no stretto. O Benedictus que se segue é um dueto duplo de ópera, um tour de force de conversa musical entre linhas de solo e acompanhamento orquestral suave.

O Agnus Dei utiliza rico conteúdo harmônico e a antiga técnina do baixo andante, em contraste com simples e suaves seções a cappella. A transição para o movimento final, Communio, por meio de uma misteriosa desconstrução cromática (requiem sempiternam) lembra o Quarteto Dissonante (KV 465) de Mozart (vídeo abaixo).

 

 

Essa ponte bem moderna fecha a obra com dois movimentos que são uma repetição musical dos dois primeiros, bem como uma homenagem final à sensibilidade barroca de simetria estrutural na música.

Finalmente, concluo esse post com o registro integral do Requiem (definitivamente mozartiano!) dirigido pelo célebre maestro austríaco Herbert von Karajan (1908-1989), no vídeo abaixo. [NOTA DO EDITOR: o vídeo em questão, mencionado por Frederico, de Karajan, o editor substituiu por um de Bartosz Michałowski, gravado em Varsóvia, no dia 01 de novembro de 2019, véspera de Finados].