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O Rio Imperial e escravocrata

Colaborador de Navegos, criador do Espaço Literário Marcel Proust, descreve o Rio de Janeiro no tempo de Machado de Assis e Aluizio Azevedo

*Carlos Russo Jr

Em julho de 1841, o Rio de Janeiro era uma festa. Toda a Corte paramentara-se para aquele que seria o seu mais importante evento: a Coroação de D. Pedro II! Na França, na mesma época, nascia em berço de ouro Gastão de Orleans, o Conde D’Eu, descendente das mais coroadas casas de Europa, Bourbons e Orleans, neto da Rainha Victória da Inglaterra, e que, no futuro, seria o marido e Príncipe Consorte da Princesa Isabel, filha mais velha de D. Pedro II, provável herdeira no trono. Foi o tempo em que o Rio, o mesmo da infância de Aluísio Azevedo e da juventude de Machado de Assis, viveu o auge do agro- negócio escravagista, que de 1841 se estendeu até 1864. A cidade, com uma população de 270 mil habitantes, inaugurou um período de renovação, tendo por modelo a Paris de Napoleão III: surgiram poucos e limitados bairros elegantes e bem cuidados para os lados de Laranjeiras e São Clemente. Proliferaram os salões mundanos num tempo das celebrações das elites.

A vitória brasileira na guerra contra a Argentina de Oribe e Rosas, a efervescência dos meios financeiros, tudo era pretexto para festejos e saraus, num Rio de Janeiro onde “bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro”, segundo Machado de Assis, na maioria das vezes para desfrutar o espetáculo predileto dos cariocas de então: a ópera italiana! É ainda Machado de Assis quem intitula esse período como “tempos homéricos do teatro lírico”. Em 1858, inaugurava-se no Rio a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional e a cantora Rosina Stoltz, “célebre cantarina” machadiana, reinava na ribalta. Mas ao lado do luxo e do refinamento de muito poucos, havia o lixo. Como a elite carioca vivia longe das praias, os dejetos eram atirados diretamente às ruas ou amontoado em tonéis recolhido por escravos e despejados no mar. Ao mesmo tempo em que a sujeira no passeio público crescia ano a ano, as praias exalavam mais e mais o cheiro da putrefação.

A maioria das doenças, coincidentes com o verão, abria aos ricos e aristocratas as montanhas até Petrópolis. Em meados de 1860 a cidade tinha mais de cinquenta por cento de negros escravos. A fuga era a forma mais comum de resistência. Surgiram, então, os caçadores de negros fugidos que trabalhavam por empreitada, com os olhos postos nos anúncios em jornais e na recompensa oferecida. Em “Relíquias da Casa Velha”, Machado de Assis nos traz o conto ‘Pai contra mãe’. O personagem tomava como figurino era um famoso miliciano de nome Manuel João, condecorado pelo Partido Conservador na Assembleia do Império. Aluísio Azevedo, em “O Cortiço”, na negra Bertoleza encarna a escrava fugida, mas explorada sexual e no trabalho por um português comerciante que não era seu dono. Enquanto este enriquece dela se serve como um cão de guarda. Quando resolve mudar de “status” e comprar um título aristocrático, ele dela simplesmente se desfaz como de um objeto, levando-a à morte. Hipocritamente, neste dia, contribui financeiramente para com o abolicionismo. No decorrer dos anos 1860, teremos o início da decadência da produção cafeeira do Vale do Paraíba. As terras estavam exauridas, o preço do escravo, desde a proibição do tráfico negreiro por pressão da Inglaterra, só fazia crescer.

Em 1864, o Conde D’Eu, da Casa de Orleans aporta ao Rio de Janeiro para desposar a herdeira do trono brasileiro. Responde, entretanto, ao chamado de D. Pedro e interrompe sua lua de mel para incorpora-se ao Exército Nacional na guerra que Brasil, Argentina e Uruguai desencadearam contra o Paraguai. A Guerra do Paraguai, que durou seis longos anos, entre 1864 e 1870, ademais de ter sido um desastre em termos de vidas, foi um dos períodos em que mais os cofres públicos foram rapidamente pilhados, tanto pelos custos em si da campanha, quanto por negociatas entre fornecedores e Estado, com a conivência e participação de oficiais do Exército comandado por Caxias. O Conde D’Eu somente assumiria o comando, por ordem de Pedro II, ao final das operações quando Caxias se nega a seguir matando crianças paraguaias.

Fortunas surgiram da noite para o dia em mãos de empresários e comerciantes muito bem relacionados politicamente. Machado de Assis, em “Esaú e Jacó” nos traz a enigmática figura de Custódio que, de arrecadador de esmola, torna-se pregador e, após, um capitalista de respeito. Tanto a drástica redução de nossa produção cafeeira, acompanhada da queda do preço internacional do café, quanto a Guerra do Paraguai provocaram o esgotamento do ciclo de desenvolvimento da metrópole. Com o final da guerra, o afluxo para o Rio de negros-soldados libertos que sobreviveram, boa parte deles com “estropiados”, contribuiu para que a estabilidade social relativa se desfizesse na cidade do Rio de Janeiro. Logo a seguir, iniciou o afluxo de imigrantes europeus e de ex-escravos vindos em desespero para o Rio, a partir das lavouras esgotadas e, em fins do século XIX, a cidade já alcançava as 700 mil almas. Triplicara sua população em não mais de trinta anos! Gerara-se o caos! A explosão demográfica agravou a pobreza e provocou enorme crise habitacional. Na cidade velha e em suas adjacências, multiplicavam-se as habitações coletivas e eclodiam epidemias que conferiam à cidade a qualificação internacional de “porto sujo”. Por outro lado, o custo de vida, com a escassez de alimento para tantas bocas, acentuou a fome e faltavam pães para o pobre alimentar-se deles com bananas, únicas frutas que ainda abundavam. Luís Edmundo da Costa, em “Memórias”, descreve as belezas e as feiuras do Rio nas duas últimas décadas do século. A cidade cheirava a ranço colonial, com infinidade de sujeiras e era varrida por epidemias de doenças infectocontagiosas.

No conceito internacional, o Rio era uma cidade bela, mas maldita. A tônica era dada pela miséria e pela sujeira. No Rio de Janeiro de ruas estreitas, muitas vezes becos onde se amontoavam toneladas de lixo. Em suas praças mais amplas inexistiam árvores, pois elas haviam sido devastadas. As ruas fervilhavam de vendedores em carroças e no lombo dos animais; os menos afortunados carregavam bugigangas nas costas e nos braços. Eram homens, mulheres e crianças, antigos escravos, imigrantes, trazendo suas mercadorias sedentas de compradores. A cidade do Rio era uma imensa feira a céu aberto. A nata da sociedade carioca, os ricos fazendeiros e aristocratas, que na virada do século não eram mais de cinco mil pessoas, viviam em suas luxuosas mansões pelos lados das Laranjeiras e de São Clemente. Mais ou menos próximo ao centro e nos subúrbios, uma classe média nascente, composta por funcionários públicos, médicos, baixa oficialidade, pequenos negociantes, começava a construir casas simples e novos bairros, tal qual o Estácio, começam a se formar, substituindo muitas chácaras antigas. Mas construir casas era caro, o aluguel mesmo nos subúrbios, insuportável para a maioria da população, o que a obrigava a viver em cortiços ou em favelas. Dos dois, o pior lugar eram as favelas, carentes de tudo, principalmente de água e esgoto, barracos toscos de madeira construídos nos morros ou em terrenos íngremes. Nelas predominavam os negros, muitos dos quais são os mutilados na Guerra do Paraguai.

Já os cortiços possuíam condições um pouco melhores que as favelas. São galpões ou casarões antigos e decadentes subdivididos por tabiques de madeira e alugados seus estreitos e úmidos cômodos. Tornavam-se excelente negócio a ser explorado pelos seus donos, comerciantes, fazendeiros e aristocratas. O Conde D’Eu deixara o Exército, desgastara-se na Corte de D. Pedro II e os rendimentos que recebia de suas propriedades na França haviam minguado com a Terceira República, após a queda de Napoleão III (1871). Agora a III República o reduzia à pobreza. Sabendo de antemão que um enorme casarão decadente situado próximo ao porto não seria demolido, em 1878, arrecadou-o por ninharia. Colocou na sua administração interposta pessoa para não se expor. Apelidado de “Cabeça de Porco”, o casarão foi transformado em cortiço e nele passaram a residir mais de quatro mil pessoas, pagadoras regulares de alugueres ao esposo da Princesa Isabel, por intermédio de cobradores implacáveis da Coroa. Tornou-se o maior e mais “acanalhado” cortiço da Capital da República.

Pois foi o “Cabeça de Porco” uma das inspirações de Aluísio Azevedo ao escrever “O Cortiço”. Na criação literária este recebe o nome de “Cabeça de Gato”, um cortiço pertencente a “alguém da nobreza e administrado por um terceiro”. Ja outro cortico , seu concorrente, o “São Romão” , havia sido montado com muito esforço pelo português João Romão e a negra que lhe servida de amante, escrava e administradora. Por uma questão de bebedeira e ciúmes, os moradores do “Cabeça de Gato” declararam guerra aos do “São João”. Aqueles do “Cabeça de Gato”, colocaram a bandeira verde e amarela para representa-los! Ingrato pedaço colorido de pano! No entanto, enquanto o “São Romão” progredia para tornar-se uma “vila”, que agora atraía não somente pobres, operários e negros, mas também artistas e estudantes, o “Cabeça de Gato” enveredava cada vez mais na pobreza e no trato mais e mais degradantes de seus 4.000 habitantes. Nem mesmo em 1889, com a República, o Conde D’Eu deixou de receber seus alugueres do “Cabeça de Porco”, que os “meganhas” seguiram cobrando de seus pobres moradores.

Em 1893, o Prefeito do Distrito Federal, Barata Ribeiro, resolveu exterminar este cortiço. Para assistir e aliar à sua imagem a representação de moderno e higienista, estiveram presentes além do Prefeito, o Chefe de Polícia, o Engenheiro Municipal, o Médico Municipal, o Secretário de Inspetoria Geral de Higiene, o Fiscal da Freguesia, guardas fiscais, oficiais da Armada, do Exército, da Brigada policial e alguns Intendentes. Um grande evento com toda pompa e circunstância! Ao término da derrubada, o resultado foi lastimável: um sem número de famílias sem moradia e com todos seus pobres pertences esparramados ao léu, prontos para os lixeiros.

Diz Chaloub (1996) “como o pobre não conseguia acumular riquezas era tido como classe viciosa, de modo que vício era sinônimo de pobreza e vagabundagem”. E eles foram sendo empurrados para os morros, nossas favelas em crescimento, até os dias de hoje.

 

Bibliografia:

  1. Coaracy, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro, Ed. Jose Olympio, 1965.
  2. Figueiredo Pimentel, Gazeta de Notícias, setembro 1908.
  3. Costa, Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Imprensa Nacional, 1935.
  4. Pereira, Astrogildo. Crítica impura, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1963.
  5. 5. Schwarcz, L. e Starling, H.. Brasil, uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015
  6. Azevedo, A. “O escravocrata”. Biblioteca Nacional. 7. Azevedo, A. “O Cortiço”. Biblioteca Nacional.
  7. Schwarcz, L.. “Lima Barreto, triste visionário”. São Paulo, Companhia das Letras.