*Franklin Jorge
Nos cumes da Serra da Tapuia, em Sítio Novo, Zé dos Montes ergueu o mais esplendoroso dos castelos que inventou ou construiu. Desde a Casa de Arame, nas Quintas, há mais de 60 anos – monumento que precede a Ópera de Arame -. Zé dos Montes demanda aristotelicamente em busca do Bom e do Belo. Constrói onde ordenam as Potestades que o instruem nos mistérios da existência. Navega por correntes, dando forma a um visionarismo que já ultrapassou nossas fronteiras geográficas. Sua obsessão é construir. Construir castelos, fortalezas e abrigos, essa a missão que recebeu de seres intergalácticos que habitam o seu mundo imaginário e real.
Ex-marinheiro, renunciou ao mundo para fazer-se artista em tempo integral, já que a arte é obsessão e solidão, escolheu-a. Um construtor de paisagens imaginárias, é o que é. Vive aqui, como o Senhor do Castelo e Guardião da Tapuia, refúgio sagrado de uma sobrevivente autóctone. Aqui, nesse recanto empoeirado, acima do nível do mar, onde se contempla o horizonte e, aos seus pés, o vale; a terra onde todos vivem do mínimo com fartura; chegou a tempo de construir seu mais esplendoroso e magnífico castelo, envolto em uma magia benfazeja, em erras de Sítio Novo. Quero pensar que esse castelo tem 100 torres que alcançam o céu. Impressionante as arrobas de cimento que investiu em sua obra magna, tudo anotado, somado, medido, contado. Enquanto tem vivido, ergue torres e sentinelas. Assim, o navegante Zé dos Montes, o que vislumbra a linha do horizonte, que antevê, como alguém a quem foi outorgado o dom da profecia.
Zé dos Montes está sentado sob uma latada, à sombra. Recebe-nos com cordialidade, quando o procuramos. Às primeiras palavras, torna-se logo, de bom anfitrião a camarada que se empenha em contar-nos dos seus sonhos e profecias, tudo inscrito em livros sagrados. Discreto, de palavras pensadas e medidas, não se dá a conhecer de repente. Trata-se, pois, de um Vate, um poeta que antevê os fatos. Que se mantém antenado com outras dimensões, viajante do Tempo. Quando não está sonhando [pensando], escreve sem parar, em hieróglifos, caracteres que vai pacientemente traduzindo, palavra por palavra, vírgula por vírgula, para que eu não perca um detalhe de seus registros e embaixadas dos que chama de Mestres.
Aqui chegamos como parte de uma Expedição Fotográfica, organizada por Sônia Furtado, Nina Batista e João Maria Alves, que me estimulou a escrever as impressões dessa incursão que me faz ganhar o dia, ensolaradíssimo, que começou com o perfume da terra molhada pelo orvalho noturno. O que faço agora, alguns anos depois, sem recorrer a notas, pois creio que as perdi em meio a tantas notas. Não é a primeira vez que João Maria o fotografa, ao velho Senhor do Castelo, que nos recebe desprevenidamente, com calor humano. Há de ter fotografado a Casa de Arame, no bairro das Quintas, em ensaio ou protótipo de uma Quimera que guia os passos de Zé dos Montes, sob as lentes de João Maria, no curso do tempo. Quando vi a Casa de Arame, aí pelos anos de 1960, senti um alumbramento. Nem pedi que o carro parasse ou retrocedesse, atônito que fiquei diante daquela casa guarnecida por um sudário de arame laboriosamente rendado, brilhando ao sol da manhã. Pareceu-me um sonho, uma aparição, aquele invólucro tecido em arame em torno da casa, algo que a tornava, entre as demais, especial.
Zé dos Montes é um caboclo silencioso, mas não taciturno e às vezes faz libações ao frescor, refestelado da garupa de uma motocicleta Alguma vez terá esvaziado, à direita e à esquerda, uma sacola de moedas, ao subir a serra. É um homem que observa tudo com olhos de águia; em derredor, a cem léguas, nada lhe escapa. O que vê e o que não vê. Mesmo em suas horas de elucubrações, perscruta, valia, prevê. Percepção muita. Veste-se como se veste todo mundo, de bermudas de algodão em tom terroso, camisa verde de mangas curtas, de seda. Alimenta-se de farinha, rapadura e mel. Do seu banquinho toma conta do mundo. Antevê o Apocalipse. Contempla as torres do castelo acima do nível do mar, sob o dossel de nuvens fugidias. Às vezes sorri para fora, quando se sente um homem feliz. Não somos felizes o tempo todo, diz-me. Mas buscamos a paz e a felicidade, que se resume na beleza. Sem beleza não há Justiça. Não há salvação. Não há paz!
Os castelos nascem da fantasia de Zé dos Montes, e do que ele vê e observa em seu visionarismo e viagens astrais e interplanetárias. Revelações que contém um propósito, nada o desanima ou lhe altera o ânimo. Está sempre calmo e relaxado. Vive para o seu sonho e Utopia, que o faz passear e se comunicar com seres de outras longínquas esferas. Deles aprendeu o alfabeto, que usa em seus testemunhos. Sem Utopia, que é do homem? A sua, construir castelos, como portas do interior e moradas.
Deles, aprendeu o alfabeto, ressalta, e a língua que usa para escrever seus Tratados esotéricos, teológicos, filosóficos, em letras e figuras ancestrais e icônicas. O senhor costuma olhar o céu, diz-me num rompante. Percebi que o céu lhe é familiar. Reverenciamos o céu, o senhor e eu, cada um a seu modo e a bel-prazer. Quase tenho de arrancar da boca de Zé dos Montes as palavras. Ele se compraz em longos silêncios e em mostrar-me os cadernos que contam mistérios de seu mundo imaginário.
Construído na chã da serra da Tapuia, de torres que saúdam o céu, numa paisagem que sugere a Grécia, com cabras pastando vale afora, entre relevos, pedregulhos e tufos de capim, o Castelo de Zé Montes recreia-nos os olhos empoeirados e as retinas fatigadas. Enche-nos a alma de ânimo e esperança ver a sua invenção sob o empíreo. Percorremos seus corredores que esbarram às vezes em becos sem saída, salões e pilastras, calabouços e celas minúsculas, terraços e ameias que desafiam o previsível. Sua branquidão coroada de telhados alvinitentes, resplendendo ao sol que avança seguindo a Dança das horas. Num corredor exíguo deparamos uma cobra que fugiu espavorida por entre nossas pernas.
Zé dos Montes construiu a alguns metros do Castelo, sobre uma grande pedra redonda, uma casa amável, inabitada, e a oferecida a mim como um lugar de refúgio e trabalho, de onde eu poderia apreciar o céu, ler e escrever, em sossego, à sombra do castelo. Escalo a pedra com facilidade e percorro a casa dos sonhos, de onde se vê o horizonte. Não há portas, exceto a do banheiro. Há água para as necessidades de um homem. Fiquei um tanto tentado pelo convite. Seria bom passar uns dias aqui. Lendo e escrevendo, e ter a companhia de Zé dos Montes. Mas pensei que esse luxo iria talvez me estragar para sempre.
Há uma sintonia entre nós que sequer as lentes de João Maria, Nininha e Sônia, logram distrair-nos. Conversamos como velhos amigos que se reencontram, no sertão seridoense, sob uma latada coberta de palmas de coqueiros e galhos de oiticica. À sombra, um banco para, no máximo, bem espremidas, três pessoas. O velho enfatiza que não valoriza qualquer companhia. Prefere à quantidade a qualidade. Só o raro é disputado. Só o raro tem valor. Sozinho, pensando mil vezes sobre as mesmas coisas, mantém-se atilado. Como Cérbero, guardião do inferno, parece ter cem olhos e a visão poligonal das abelhas. Enxerga, como disse longe. Talvez nos faltasse a música celeste de Urbano Medeiros, que havia pouco descobrira noutra viagem interior. Esse Vivaldi seridoense com algo de eremita, transplantado para Minas Gerais, faria um concerto magnífico, aqui, no Castelo sagrado, no dorso da serra da Tapuia.
Desse encontro tenho o registro visual completo feito por João Maria Alves, experiente e sensível repórter-fotográfico, há mais de 50 anos fazendo história através de registros fotográficos de saborosa verve etnográfica. O Rio Grande do Norte está gravado em suas lentes. Quisemos torná-la pública, em mostra didática, pela Sala Natal, projeto sumariamente abortado pelo secretário de Cultura, que sequer se dignou a examina-lo. Além da mostra e de oficinas e laboratórios de Fotografia, em atividade de fato multicultural [o secretário usa o termo de maneira duvidosa], participativa, interativa; enfim um programa efetivamente Cultural, didático, informativo, construindo o Conhecimento e aguçando a leitura crítica do objeto estético. Atividades mais próximas da Educação do que do Entretenimento.
Planejava-se também a edição de um livro reunindo a produção desse dia prodigioso e o acervo fotográfico, exponencial, informativo, digno de consagração pública, produzido por esse renomado repórter-fotográfico com quem tive a honra de trabalhar em diversas circunstâncias jornalísticas. Algo com que pudéssemos construir uma história visual do RN, algo de grande apelo turístico que secretário de Cultura boçal, de olhos fixos no próprio umbigo, não percebeu, não valorizou, torceu-lhe o nariz. Assessoramo-nos do conhecimento e da experiencia de Consultores informais qualificados que que deram o melhor de si por Natal. Dois dos quais cito com satisfação, a sra. Wanda Mieko, representante da Comunidade Japonesa, o professor Antenor Laurentino Ramos e o origamista Eugênio Rangel. Trabalhamos juntos, nesse projeto, de Josivan Alves Pereira, Deborah Sousa e o autor destas linhas.
Pensávamos colocar em prática novas ideias,funcionais e dinâmicas, segundo a recomendação que recebi do Prefeito, em sua boa-fé e em minha esperança: ”Pense grande! Surpreenda-nos com a Sala Natal”! Foi o que intentamos fazer, na Sala Natal, valorizando o mérito de João Maria Alves e oferecendo à cidade a usufruição de uma arquitetura onírica, chagalliana, digna de aplausos. Um endereço cultural, arquitetônico e turístico nos sertões seridoenses, a atrair olhares encantados. Esse castelo deve ser considerado Patrimônio Cultural.
Afinal, fomos boicotados, o Prefeito e a Sala Natal, pelo secretário de cultura e presidente da fundação capitania das artes.